Brand-News Publicidade 1200x90

Hi honey

Beatriz Aquino - Atriz e escritora
04/04/2025 14h41 - Atualizado há 1 semana
Hi honey
Beatriz Aquino em cena do espetáculo teatral “Recortes - A Mulher e seu corpo público”, de sua autoria - Foto: João Ferreira (Xuão)

 

Te escrevo de longe. Sei que detesta quando misturo os idiomas assim, acha esnobe. E eu também acho. Acho até mesmo ridículo. Mas hoje não estou pra cerimônias. Ando puta da vida. Carregando aquela ironiazinha fina e letal que faz com que tudo e todos ao meu redor seja cortado ao meio. E agora, pra piorar, com uma certa idade dei pra falar palavrão. Coisa que sempre achei odiosa numa mulher. Exceto nas atrizes de cinema tipo Lana Turner. Mas como você sabe, eu venho dos trópicos e não tenho o ar gelado e lânguido das loiras hollywoodianas. Nem gostaria. Pois sempre as achei uns sarcófagos pintados de branco. Estou mais é pra cangaceira mesmo. Tenho essa pele meio olivastra e um gênio que faz tremer até o último fio de cabelo do demo. Ou do filho dele. O demo tem filho? Enfim, se tem é um tremendo de um filho da puta. Mas veja só que as mulheres não têm nada a ver com isso e já estão sendo achincalhadas. Mas é assim mesmo. Desde sempre. Eu que o diga.

Mas eu dizia que agora dei pra falar palavrão. Vai se acostumando. A vida nos trópicos vai bem. Ou vai como tem que ir. Desde que te larguei na soleira da porta da tua casa com aquela cara de atônito, nunca mais te escrevi. Mas nunca vou esquecer. Você e sua cara de surpresa, parado com o teu um metro e oitenta, teus dois olhos verdes me olhando na frente daquela casa irlandesa, daquela cidade irlandesa, no meio daquela gente irlandesa. Você com aliança na mão, o casamento marcado, me vendo partir deve ter pensado “Essas latinas são todas umas loucas.” Mas olha, não foi nada pessoal. Antes de você eu havia feito o mesmo com um alemão. O casamento marcado, a casa arrumada e eu fugindo de Frankfurt, louca e decidida dentro de um trem rumo à Paris. E antes desse teve ainda o brasileiro. Com o qual fui até o altar, mas que seis meses depois já estava correndo dele também. E no meio desses dois teve o francês. O tal do astrofísico-gênio-de-vinte-e-cinco-anos que me arrancou o coração com as duas mãos. Ou fui eu quem arrancou o dele? Ok, fui eu. Mas ele ia fazer o mesmo, então me antecipei. Sabe como é, no final das contas tudo vira uma questão de semântica. A gente sacode as carnes, costura as costelas e segue em frente. Mas não vim aqui pra falar disso. O que passou, passou. A aliança de noivado que me você deu eu vendi porque a vida na brasilandia não é fácil. Queria só dizer que a vida de atriz tá uma merda. Faço um monte de coisa boa, interessantíssima, mas que não vende. E se vende, pagam pouco. E quando pagam, ainda reclamam. Afinal, quem quer assistir o monólogo de uma ex-cidadã do mundo metida a besta que de repente, às vesperas da balzaquice aguda, quis se conscientizar e falar sobre angústias femininas? Pois é. Eu deixei você plantando na porta de casa, uma casa linda, um homem lindo, bem dotado, meio sem jeito pra coisa, mas com potencial, um homem meio budista, meio sério, meio chato. Aliás, você era chato pra caramba. Mas era confiável. E bonito. E tinha olhos verdes e um metro e oitenta e ia casar comigo, me dar passaporte europeu, me levar de férias pra Costa Amalfitana, para passar o feriado de Páscoa na Cornualha, passear de mãos dadas por Notting Hill. Você ia me dar tudo isso. E tudo isso para uma mulher que vem de um país onde metade dos homens são cafajestes e a outra metade são matadores de mulheres e que no meio disso sobra apenas, bem sufocado entre essas duas realidades, um ou outro homem de qualidade, homem que por sinal é disputado à tapa pelas ninfetas enlouquecidas ou por essas mulheres malhadas e imensas que mais parecem gladiadores de espartilho e calça de lycra, isso deveria dizer muita coisa. E diz. Mas sabe, eu deixei o homem-europeu-que-me-pediu-em-casamento largado na porta da frente da casa-modelo-onde-envelheceriamos-juntos-tomando-chá-de-hibiscos porque a vida é grande. Porque o pensamento é coisa profunda e a subjetividade é algo que não se vende. E peço desculpas. Peço desculpas a todos vocês por ter buscado em vocês esses refúgios. É que às vezes a coisa não é fácil e tem dias que o inverno no Leblon é mesmo quase glacial. E olha que eu nem vou ao Rio.

Tudo isso é pra te dizer que vida de atriz tá uma merda. E será sempre assim. “O ator é o pano de chão do mundo”, já disseram. E apesar de vez ou outra esse pano fazer uma limpeza incrível, de emocionar, de arrebatar, o ofício é coisa bem difícil, bem dura. Vivemos sempre pela metade. Meio amargurados, meio insatisfeitos, meio ressentidos. É coisa demais pra falar, pra brigar. Tem a política, tem as questões sociais. Tem a mídia que só fode com a cabeça da massa, tem essa música chinfrim deseducando o povo à baciada por décadas e décadas. Tem essas mulheres que passam o dia malhando o traseiro e se transformando nesses gladiadores envelopados em lycras fluorescentes que atrapalham um bocado a nossa vida, pois vendem a ideia de que pro homem agora a mulher não passa de uma boneca inflável falante, todas prontas para o sexo, com bocas, peitos e bundas apontados para a lua. Uma tristeza. Tem o governo que quando muda extingue o Minc e acaba com os artistas. E o outro, que quando entra supervaloriza tantos outros e cria esses monstrengos de ego inflamado. Que chato. Tem a inflação, tem a falta de colágeno na cara da gente, tem a falta de vergonha dos bandidos, tem a xenofobia, a gordofobia, a homofobia. É tanta coisa pra gente cuidar, é tanta coisa pra se indignar que senão cuidar estaremos sempre inflamados, sempre irados. É terrível. Você entende, agora? Entende porque larguei você naquela porcaria de soleira de porta com ares de século dezoito? Acha mesmo que toda essa indignação que eu trago comigo poderia ser amansada com chá de hibiscos e pintura em aquarela? Pois é. Mas eu bem que tentei. Na Irlanda, na França, na Itália, em Portugal. Foram quatorze países, meu caro! Quatorze! Cinco idiomas falados, aprendidos, assimilados. Alessandro Manzoni, Júlio Verne, as leituras de Balzac e sua Comédie Humaine nas noites frias do apartamento minúsculo da Rue de Rivoli. Tudo isso eu tentei. Mas nada. Não tem jeito. Gente como eu já nasce no front. Já nasce alistada pra guerra e nem sabe. E bem que eu queria ter me apaziguado na opulência das coisas e ser apenas mais uma perua com ar melancólico comprando geleia na Fauchon da Madeleine. Mas não. Deus, ou o diabo me quis assim, com essa sina de fazer perguntas. Com essa cara de indignação. E ler Clarice contribuiu muito pra esse processo também.

Mas cá estou. Viu? Mudei até de parágrafo, coisa de gente civilizada. Cá estou. Militando nos trópicos. Me vestindo de mulher picanha, correndo em cima de uma mesa com um macacão que imita a pele recortada de uma vaca. Tudo isso pra tentar sensibilizar sobre a questão da objetificação do corpo feminino. Porque o fato é que estão matando as mulheres por aqui. Por aí também matam, eu sei. Só que aos poucos. E de raiva. Mas aqui a coisa tá feia. As mulheres estão caindo como moscas, sendo abatidas mesmo. E a coisa não muda. Ninguém faz nada. Ou quase nada. Então cá estou. Gritando, chorando, me descabelando em cena, levando dor e medo pro palco. E também morrendo de medo. Porque esse medo é de todas nós. Cada vez que uma mulher é morta, cada vez que uma mulher é estuprada e o filho da puta do estuprador é inocentado, matam a gente mais um pouquinho, arrancam mais um naco. E não é fácil. Quem não faz nada se fode. Quem grita se fode. Quem denuncia se estrepa. Nós, a feministas, e por Deus que eu queria outra ocupação, somos taxadas de raivosas, loucas, paranoicas. E o noticiário engordando, os números aumentando. E continuam nos tolhendo, nos enlouquecendo com esse sistema que passa por cima dos nossos ossos que nem um trator. Você acredita que outro dia a filha da puta de uma contratante depois de ter me enchido o saco negociando valores, hospedagem e alimentação, me pediu pra gravar um vídeo chamando a cidade pra ver a peça? Ela disse assim “Faz um vídeo bem legal, bem animado, chamando a galera pra ver o espetáculo porque aqui eles gostam de coisa bonita assim que nem você.” Mas é uma anta invertebrada mesmo, não é? A vontade que eu tive foi de gritar “Você tá achando que tá contratando um show sertanejo, minha filha? Vamos falar sobre es tu pro! Fe mi ni cí dio!!” Mas não falei. Não falei porque sou educada. E porque tô precisando da grana. Mas entende o que tenho que passar? Mas não ria. Não se delicie por eu estar comendo o pão que o capiroto amassou. Por esses lados aí também tem um monte de violência velada. Ou acha que eu não lembro do teu tom de deboche no chá das cinco? Pois bem. A coisa aqui é pesada, mas eu não abro mão. Prefiro essa vida de cangaceira que ganha pouco, mas que grita muito. Vou morrer velhinha vestida de picanha correndo em cima da mesa, vou fazer rebelião no asilo, vou denunciar diretor ladrão, vou castrar velhinho tarado com serrinha de pão. Vou. Mas quieta é que eu não fico. Porque essa coisa de matar mulher, de ofender mulher, de usar mulher, de estuprar mulher tem que parar. Ou pelo menos diminuir.

Era isso. Vou lá ensaiar porque com a idade o texto não fixa mais com tanta facilidade e o fôlego também não é dos melhores. Vou lá me apresentar porque o show tem que continuar e eu quero ter o prazer de chocar meia dúzia de macho escroto e acordar meia dúzia de mulher oprimida. Vou trabalhar porque a luta é grande. E a causa é nobre. E porque esse ano preciso muito comprar um aquecedor. O inverno aqui tá brabo, meu caro. Que raiva que eu tenho daquela soleira da porta da tua casa com ares de século dezoito…

 

 

*O Brand-News não se responsabiliza por artigos assinados por nossos colaboradores


Notícias Relacionadas »