08/11/2024 às 14h36min - Atualizada em 08/11/2024 às 14h36min
A mulher e o cão
Beatriz Aquino - Atriz e escritora
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Foto meramente ilustrativa - Reprodução Google
Para que servem os livros? Perguntou o cão à mulher que lia.
Ou foi a mulher que disse ao cão sentado aos seus pés: “Veja, isto é um livro”?
Não sei. Mas o fato é que a pergunta foi feita, por alguém foi feita. E agora ela pairava na noite fria, volitando pela sala onde a mulher escondia-se em penumbras, colocando sobre a alma essas desculpas chamadas palavras.
- Para que servem os livros? Digamos que o cão tenha perguntado à dona.
- Para nos trazer conhecimento. Respondeu a mulher.
- Não. Os livros servem para serem rasgados e feitos em mil pedacinhos com a minha boca. Para que assim eu os espalhe pela sala, desorganizando a ordem com a qual você reina sobre ela. Disse o cão. E foi até a cozinha beber água.
Na volta, encontrou a mulher pensativa.
- Sim, sem dúvida. Faz sentido. Também eu não o trituro e o despedaço com minha mente, com minha vontade de entendimento? Perguntou ao cão. E também a si mesma.
- Decerto. Disse o cão, subitamente parecendo muito profundo sentado em posição de esfinge. Era um cão nobre. Todos são. - Decerto, também eu na minha busca pela desordem, no meu modo descuidado e rude de tocar as coisas com a boca, busco o entendimento, uma maneira de sentir o mundo.
A mulher pensava. O cão, sentado aos seus pés, a cabeça ereta, as orelhas atentas, continuava:
- Veja por exemplo nossa história. Cheguei aqui assustado e faminto, adotado por tuas mãos boas e humanas. Quis fugir ao primeiro impulso, como primeira impressão quis fugir, mas o portão foi fechado antes que eu, na minha condição ainda não de toda domesticada, pudesse exercer meu livre arbítrio. Mas quis fugir não por medo dos maus tratos, mas sim do elo que se fazia entre eu e você. Elo que eu intuía em minha condição canina, ser para sempre.
A mulher empertigou-se na cadeira. Incomodava-lhe o termo para sempre. Principalmente quando se tratava de relações. O cão, adivinhando-lhe o desconforto, tendo já aprendido sobre a dificuldade humana em lidar com questões tão básicas, colocou o rosto entre as duas patas da frente - esse gesto sempre a enternecia - e como se fitasse o horizonte tentando buscar uma reflexão mais acertada e também para dar a ela tempo para se acostumar com a ideia, continuou:
- O que quero dizer é que enquanto você procura no livro o que a tua alma pede, eu encontro o que a minha anseia em você. Em você e também na minha sina de cão. Que o conforto perseguido me visita várias vezes ao dia quando me deparo com um brinquedo novo, ou com o alimento, se eu estiver com fome. Beber água também me traz grande satisfação. Assim como correr no parque me proporciona grande prazer e contentamento.
A mulher olhava-o intrigada, porém menos surpresa do que deveria com a revelação ou simplesmente pelo fato de estar conversando com um cão.
- No entanto - Eu disse que ele era um cão nobre. E usava por vezes palavras rebuscadas. Sabia utilizar-se das pausas - devo acrescentar que também sei o que é angustia, embora ela seja menor dentro da minha estrutura de bicho, pois sei que sou bicho, ou intuo, apenas. Intuir me é o suficiente. Mas experimento a angústia muitas vezes ao dia, pois assim como todo ser vivente, não sei como será o futuro. É fato que o futuro para mim pode significar apenas uma tarde, a metade do dia, o começo de uma noite. Sabe, nós cães não medimos o tempo da mesma maneira. Mas me angustio. Por exemplo, entristeço muito e inutilmente quando você se atrasa, ou quando não me dá atenção que considero devida. Mas aprendi que isso não é lá motivo para grandes preocupações. E na maioria das vezes, em quase todas elas, essa angústia é facilmente substituída por um osso, uma bola de borracha, um graveto. E claro, pela tua chegada, a qual sempre julgo um acontecimento sublime. Mas algumas vezes, é bem verdade, sou acometido por uma angústia mais pungente, uma certeza sobre a incerteza das coisas. E é então que sofro. Tenho certeza que sofro.
- Sofrer nos faz mais humanos. Disse a mulher, esquecendo a preocupação de estar, por Deus, em pleno colóquio com um cão.
- E os bichos por acaso são menos humanizados que as pessoas? Se tal adjetivo serve para indicar qualidade de sentimento, coerência de atitude e nobreza de coração, não poderíamos então estarmos inseridos na mesma categoria? Ou que então mais humanizadas, as pessoas pudessem finalmente admitir que a condição de bicho não é menos sensível e profunda que a de qualquer outro ser humano? Afirmo que qualquer ser vivente, criado e nascido a partir dessa mesma faísca de mistério traz em si a mesma vontade de entendimento, a mesma certeza de afeto, embora nossas linguagens se diferenciem.
A mulher não ousou encarar o cão. Sabia-se agora em terreno perigoso. Amava-o, gostava de tê-lo dócil e submisso deitado no tapete da sala a brincar com seus pés enquanto ela, humana e humanizada lia, achando-se talvez muito superior não somente a ele, mas a todo o resto que lá fora vivia. Não lhe agradava a ideia de um embate filosófico com o cão. Talvez por preguiça, talvez por medo de que perdesse na argumentação. O que seria de todo ridículo, dada sua condição de mulher que lia, e a dele, de cão.
Educado e distinto, o cão mudou de posição. Deitou-se de costas, as quatro pernas estendidas, as patas dobradas, a boca aberta num ar divertido. Era o seu modo de dizer aos humanos que tudo estava bem, que tudo ia a contento. Inteligente, aquela era a maneira que encontrara de suavizar o discurso, deixar o seu interlocutor mais à vontade, para que então ele pudesse penetrar nas coisas mais complexas, ir ainda mais longe. Ele continuou.
- Mas veja que essa é uma questão antiga. De difícil equação. E a solução não virá essa noite. Nem nessa vida. Vida onde você é apenas uma mulher que lê e eu sou apenas um cão. Observe que desde tempos idos, nossas raças vêm interagindo. Ambas antes mais selvagens e rudes. Agora mais seguras e exitosas. Não tememos mais os predadores, juntamos as forças, não precisamos mais da caça. A selvageria foi então ficando do lado de dentro, os pensamentos tomando mais corpo que o corpo. Por isso pensa-se e busca-se tanto. Por isso a senhora - ele era educado e mudava o pronome de tratamento de acordo com a ocasião ou o discurso -, por isso a senhora lê. E por isso eu falo. Não se assuste. São outros tempos. Apenas isso.
- Mesmo assim eu me preocupo. Disse a mulher, ocupando seu lugar de fêmea humana e, portanto, sempre preocupada, sempre aflita.
- Com o que se preocupa?
- Com o fato de eu estar direcionando a sua vida, lhe ditando um modo de viver, de não estar, talvez, lhe dando o estímulo necessário para o seu aprendizado, para o seu conforto. Não sei.
- Mas os cães não precisam de muito. Basta o alimento, o teto, o carinho. Nossas angústias, como eu disse, são facilmente substituídas. Os jogos, os passeios, a diversão e sobretudo a possibilidade de amor nos preenche deveras. Portanto, mesmo quando sofremos somos felizes.
- É possível isso? Sofrer e ser feliz? Ao mesmo tempo?
- Sim, se tivermos fé. Ou instinto. O que para nós significa a mesma coisa.
A mulher soltou um suspiro. Fez-se silêncio na sala. O cão começava a olhar um inseto que escalava a parede, a sombra de uma coisa pequenina com pernas finas e longas se agigantando sobre ela. Não tardaria muito até que ele, desajeitado e abrupto, tentasse inutilmente interromper a rota do inseto, jogando-se contra a parede. Coisa que sempre fazia. A mulher arriscou mais uma vez a pergunta.
- Para que servem os livros então? Não, na verdade, para que servem os pensamentos?
- Para nos conduzir a nós mesmos. Pois que na falta de presa, mamíferos que somos, possamos caçar as coisas de dentro. O cão respondeu antes de erguer as orelhas, estreitar os olhos e saltar sobre as duas patas traseiras em busca do pequeno aracnídeo, indefeso e minúsculo que corria sobre a parede branca.
(Ao Zé e seus quase dois anos de sabedoria)
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