01/11/2024 às 14h50min - Atualizada em 01/11/2024 às 14h50min
O Carnaval das sentadonas
Beatriz Aquino - Atriz e escritora
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Foto meramente ilustrativa - Reprodução Google
Nunca gostei muito de Carnaval. Apesar de adorar o longo feriado, a possibilidade de mudar a rotina, as grandes aglomerações sempre me assustaram.
Gosto de ver a tradição do Carnaval, isso sim. A história das comunidades por trás de cada escola de samba, as músicas que retratam a cultura, a paixão que a velha guarda dessas comunidades coloca nos desfiles num modo de perpetuar a história, gritar as necessidades e as alegrias do seu povo. Depois vem a explosão na avenida. O sambódromo, arte pura, as plumas, as cores, as alas, a comissão de frente, a bateria com suas musas monumentais. Acho bonito. É um pedaço esplendoroso do meu país, uma força que faz vibrar e encanta por onde passa. Em todo o lugar do mundo, por todos os países que passei, a experiência que as pessoas têm com o Carnaval, mesmo que seja somente pela televisão, é sempre arrebatadora. O Brasil é um lugar realmente fascinante.
Depois vem o Carnaval de rua, os trios elétricos da Bahia, os bloquinhos das cidades pequenas com suas marchinhas e sua gente tão alegre, tão pitoresca em suas fantasias e sua vontade de ser feliz. Nem que seja por quatro dias.
Mas como tudo que avança tende a perder a força motriz, e junto com isso um bocado da sua beleza, muito do que se vê hoje pelas ruas é um pouco de resistência e vontade de fazer um Carnaval decente, embasado nos valores com os quais ele se originou e um tanto, muitíssimo eu diria, de deturpação e histeria. Vejamos as músicas por exemplo. Quando pequena lembro de ouvir marchinhas como “Olha, a cabeleira do Zezé…”, “Ó Colombina por que estás tão triste?”, indo descobrir somente na vida adulta que algumas delas tinham duplo sentido, insinuavam sexualidades e comportamentos. Mas entendo que isso faz parte da sátira que o próprio movimento traz, é o povo nas ruas colocando seus monstros pra fora, falando o que não pode falar durante o ano inteiro. Tá valendo.
No entanto, é difícil, quase impossível não reparar que desde que um grupo resolveu lançar o hit “Ele vai dar uma chinelada na barata dela” que a coisa degringolou vertiginosamente. Ladeira abaixo mesmo. Vide o traseiro das mulheres que estão cedendo cada vez mais à gravidade dos fatos. Ou seja, perdeu-se de todo a poesia.
Claro que o Carnaval é a época mais sensual do ano. Caetano já cantava “A gente se olha, a gente se beija, se molha de chuva, suor e cerveja.” Claro que é época de pegação, de beijar na boca sem compromisso. E tá tudo certo. E está? Não. Hoje em dia, não. Porque como tudo que acontece no Brasil, todas as expressões que se tornam populares tendem a tomar proporções gigantes e histéricas. E então a chinelada na barata dela virou creu velocidade número cinco, depois disso uma moça foi ficando atoladinha, e depois que não conseguiram mais segurar o tchan o número de garrafas foram sumindo assustadoramente dos mercados. Todas engolidas e desaparecidas no limbo das boquinhas ensandecidas.
Bom, se Vinícius e Tom falavam do rebolado poético de sua musa, se na época o bonito era eleger uma cabrocha e falar do tom e do calor de sua pele, agora o que se fala, o que realmente importa é como a menina senta. E então temos uma batelada de músicas fazendo menção a esse ato. E não estou falando aqui do modo com que ela cruza as pernas, se ela é elegante ou não. Não. É sentar mesmo. No sentido sexual. E o que se ouve é uma profusão de hits com frases e refrões de péssimo, péssimo gosto; Sentadona, socadona, deslizadona, atoladona, mexidona, sentadona-mexidona-engolidona-rapidona. Isso tudo acompanhado de um traseiro estratosférico conseguido à custo de muitos agachamentos e treinos. E esse traseiro, mais uma parte, mais um pedaço da mulher que segue extremamente exigido tem que subir até a nuca, tem que quicar, tem que desenhar quadradinho de oito no ar, resolver equações aritméticas, encontrar o valor de PI. Enquanto isso os homens, os caras que escrevem essas músicas repetem em uníssono: “Eu fico aqui deitado e você vem sentando, quicando, pulando, sambando, dançando, porque eu sei que você quer.” Ou seja, as mulheres continuam fazendo todo o trabalho. Enquanto eles, agora ditam as frases e passos que elas vão repetir como hienas adestradas. E elas seguem tão desavisadas que nem se dão conta de que ao invés de empoderadas estão apenas repetindo e engrossando uma procissão ancestral de opressão e degradação do feminino.
Acho lindo uma mulher nua, não importa que corpo tenha. Ela pode e deve sair nua na avenida, no bloco, na rua e não ser incomodada por isso. Mas desde que isso seja uma decisão pautada no seu orgulho próprio, na apropriação do seu corpo, desde que seja uma celebração a ela mesma. E temos casos assim. É bonito de ver. Mas a grande maioria das mulheres que entopem as academias, que se automedicam, que fazem dietas estrambólicas estão, sim, ainda tentando agradar o grande deus do falo. Porque no fundo ela quer ficar gostosa para atrair a atenção do homem e quem sabe assim conseguir dele um pouco de aprovação. Não somos tão livres como pensamos. Eu não compro essa farsa de que um monte de mulher bêbada lustrando o meio fio com o traseiro é sinal de evolução e liberdade. É preciso ir bem mais a fundo, atravessar os orifícios, tentar entender o que nos move, o que nos faz, o que nos sustenta como pessoa, como sociedade.
Vejo as mulheres cada vez mais atarefadas, com suas ânsias de serem aceitas, de se tornarem deusas poderosas de corpos perfeitos a seduzirem metade do planeta. Isso é muito perigoso. Porque essa conta não fecha. E nunca vai fechar. Porque vai ter sempre mais um homem fazendo uma música que vai exigir mais destreza, mais velocidade, mais volume, mais traseiro. E o que teremos no futuro é uma geração de mulheres corcundas e com sérios problemas nos joelhos devido a tantos agachamentos. E o pior, todas espantadas de não terem chegado ao pódio prometido, de não terem conseguido alcançar a sensação de ser a mais desejada, a mais gostosa, a mais perfeita, estupefatas aos descobrirem que fizeram parte por anos, de um jogo de competição onde doaram seus corpos, suas saúdes, seus pensamentos e seus sentimentos para se encaixarem, para serem aceitadas no velho e batido leilão masculino.
Tenhamos cuidado. Perdemos a Bossa Nova com toda sua beleza e poesia, perdemos as cores da Colombina e do Pierrot. O Carnaval se tornou uma olimpíada do ego e os beijos e o sexo viraram mera fricção, rápido detalhe descartável num lugar onde milhares de convulsionados se estribucham ao som das batidas como se fossem zumbis eletrizados.
E sobre a mulher, se continuar do jeito que está, não haverá mais nada no mundo que seja pontiagudo o suficiente para que ela possa sentar em cima. E então por Deus, não se sabe quantos orifícios mais irão criar nela para que ela possa dar conta dessa demanda.
Entendamos assim, a mídia cria tendências, te diz o que você deve consumir, o que fazer para ser aceito, que música escutar, o modo como deve colocar e mover o seu corpo. A mídia é um aparato econômico voraz feito apenas para lucrar. E é importantíssimo saber que por eles ainda ocuparem os principais lugares de poder a mídia serve sempre ao desejo do homem. Ou seja, no final das contas, a mídia serve ao homem, o homem serve à mídia. E você mulher, turbinada ou não, com o traseiro besuntado de purpurina ou não, continua como sempre, servindo a todos.
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