O tal do querer
Beatriz Aquino - Atriz e escritora
27/12/2024 14h09 - Atualizado há 1 mês
Foto meramente ilustrativa - Reprodução Google
Sou uma pessoa discreta, reservada no cotidiano. Aprendi cedo a tratar os senhores por senhores, as senhoras por senhoras e dar bom dia a quem passa pela rua. Tenho um cachorro grande com o qual costumo passear pelo bairro em que moro. Então é natural que as pessoas sejam mais sociáveis, perguntem o nome dele, a raça e etc.
Pois bem, tenho aqui um vizinho da rua de baixo ao qual sempre cumprimento. Assim como faço com todas as outras pessoas. Numa dessas ocasiões, do nada, ele comentou que uma dia desses apareceria aqui em casa para tomar café com o Zé, que é, no caso o meu cachorro. Sorri amarelo e segui, mas não sem antes reunir forças e dizer: “Não senhor, em casa não tem café pra ninguém.”
Na semana seguinte, lá ia eu descendo a rua e ele subindo a mesma. Eu disse um bom dia mais seco, mais que foi o suficiente para que ele se sentisse à vontade para me pedir que tirasse os óculos de sol. Perguntei o motivo e ele disse que era pra ver os meus olhos. Respondí de pronto: “Sério que o senhor está fazendo isso?”. Veja que somente o tom com que proferi essa frase seria o suficiente para que ele entendesse que eu não estava interessada, mas claro, como a autoestima do homem é da ordem do delírio, ele ofegante, encostado no muro, respondeu: “Sério, quero ver os seus olhos.”
Vejam só. Eu QUERO ver os seus olhos. Quero. Do verbo querer. Porque para os homens sempre foi assim. Sempre que eles querem alguma coisa eles vão lá e pegam. Mesmo que a mulher esteja constrangida, cabisbaixa, monossilábica, ele sempre vai poder ir além. Porque acostumado ao seu lugar de poder, nada pode ser mais importante que o seu desejo.
E é assim que vivemos. Acuadas. A todo momento temos que pensar no tom do nosso bom dia, no cumprimento dos nossos cabelos, de em uma reunião de trabalho ter que pensar além da nossa competência técnica sobre estado dos nossos mamilos, se a blusa deixa entrever algo, se a saia ao sentarmos vai estar curta demais, se sorrirmos muito ou elogiarmos nosso colega vamos estar passando uma ideia de permissividade. Porque o campo é minado. Sempre foi.
Eu particularmente acho esse assunto um saco. Acho muito injusto que até os dias de hoje ainda tenhamos que repetir essa ladainha tantas vezes. E só a repetimos porque os homens simplesmente não aprendem. Eles simplesmente não param. Não param de nos importunar, de nos incomodar, de nos rotular, de ver nosso corpo como uma constante promessa de prazer, seja no supermecado, na fila do banco, na fila da farmácia quando você está gripada e irritada. À todo momento tem sempre um sujeito te lembrando que você possui orifícios. E que é preciso cuidar deles, do contrário, eles podem ser comentados, tocados, atacados. Eu me pergunto que homem conseguiria viver um dia que fosse dentro dessa realidade.
E não há saída para a mulher. A partir do momento em que um homem desses decide investir numa mulher sem que essa tenha realmente correspondido ao seu flerte, que no caso, entendamos de uma vez por todas, isso configura sim em assédio, a mulher será obrigada a desempenhar apenas um papel, ou os papéis que o calhorda escolheu pra ela. Por exemplo: se ela der bola, vai ser chamada de fácil. Se for seca, vai ser chamada de frígida, mal amada. Se der barraco, vai ser chamada de louca, neurótica. Afinal ele não estava fazendo nada demais.
Não há saída. Somos constantemente obrigadas a atuar como coadjuvantes num protagonismo que sempre foi deles. Num filme onde eles escrevem o roteiro. É uma dinâmica cruel, canalha e impune. Porque acreditem ou não, ou tal vizinho, dois dias depois de eu ter dito claramente que não estava interessada, apareceu na janela da minha casa, chamou pelo cachorro insistentemente e não saiu até que eu aparecesse, que foi quando ele disse com ar de triunfo: “Ah, agora posso ver os teus olhos!!”
Entenderam o delírio? A autoestima violenta de quem está acostumado a querer e ter o que quer?
Ainda tive a calma de uma monge tibetana para perguntar o que aquele senhor queria, assim mesmo, sempre usando esse tratamento para estabelecer uma distância. Ele balbuciou alguma desculpa esdrúxula, eu fechei a cortina na cara dele e fiquei remoendo o acontecimento. Com ódio de mim mesma por não ter falado um monte pra ele, jogado um balde d’agua, mandado ele se ferrar. Mas não fiz. Eu fiz o pior que uma mulher poderia fazer nessa situação: fui educada. Como aprendemos a ser desde cedo, mesmo nas situações mais constrangedoras. Porque nosso lugar de fala ainda não é nosso. Ele é apenas emprestado. Conquistado na briga, no grito, na luta. E o mais impressionante é que mesmo a feminista mais ferrenha, quando sozinha com um homem, refém do seu colossal e massacrante modus operandis, vai balançar, vai se constranger, vai se sentir envergonhada. Porque a culpa é a arma mais letal e mais eficiente que a sociedade masculina impõe sobre a mulher. O homem pode fazer o que for. Bater, estuprar, bolinar adolescentes, mas haverá sempre alguém perguntando à vítima o que ela fez para atrair ou desencadear tal acontecimento. Porque não importa a clareza das provas, o número de testemunhas, o vestígio de DNA nas estranhas da vítima, haverá sempre alguém procurando um modo de desacreditar aquele corpo, de fazer ele crer que foi ELE o causador da desgraça. E sabe por que? Porque os homens se protegem. Toda a sociedade o protege. Todo o sistema é feito para que ele saia vitorioso de qualquer situação. Afinal, ELE inventou o sistema. E aí, é claro, dentro do meu sistema, ganho eu, não é mesmo?
Não é de hoje que falo sobre a extenuante missão cotidiana da mulher de ter que entre milhares de afazeres, gerenciar a libido masculina. É um cansaço que não passa, uma sensação de raiva, constrangimento e ressentimento que não acaba. E tudo isso para uma coisa que não é nossa. O machismo não é uma invenção feminina. É criação do homem. Sua ferramenta mais sádica e mais cruel de lazer. Então por que tenho eu que vir aqui falar sobre isso?
O patriarcado não é uma condição fisiológica. O homem não possui mais libido devido ao seu cromossoma. A testosterona não pode explicar e sobretudo atenuar traições, cantadas, investidas abruptas, estupros e abusos. Acreditem, nossas fantasias sexuais vão muito além da de vocês. A única diferença é que nós sabemos diferenciar a realidade do delírio. Guardamos nossa sexualidade e até mesmo nossas esquisitices para a segurança dos nossos quartos e claro, as expressamos e as compartilhamos apenas com quem nos permite. Portanto, a condição do homem abusivo sempre foi uma questão de poder. Porque apenas ele em toda uma sociedade pode, mesmo aos setenta, aos oitenta anos decidir se deliciar com uma menina de quinze, de doze anos. Vide os famigerados casamentos entre crianças e adultos permitidos em algumas culturas. E onde ele não é permitido, o tal senhor vai lá e toma. Seduz a sobrinha, estupra a filha da vizinha. Porque o querer dele tem que ser alimentado.
Não se enganem. O machismo é o começo do feminicídio. Porta de entrada para todas as atrocidades que vemos constantemente nos noticiários. Lazer cruel de quem, nas horas vagas, decide importunar, humilhar, traumatizar, apenas para o seu prazer. Porque só quem acredita que pode ter o seu desejo realizado a qualquer custo, acua uma mulher dentro da sua própria casa sem que ela tenha lhe dado nenhuma possibilidade de acolhimento ou permissão.
O flerte unilateral, que é quando o homem decide que está paquerando uma mulher e decide, em sua mente febril e doente, que ela está correspondendo, precisa ser discutido. Porque é tão violento quanto um estupro.
E não adianta dizer aqui: “Ah, que tiozinho sem noção! Coitado, ficou apaixonado”. Não. Não cabe. Não cabem mais essas frases atenuantes que sempre, sempre vão inocentar esse tipo de conduta e servir apenas para que ela continue acontecendo.
Que chegue o dia em que uma mulher possa andar pelas ruas sem medo. Sem ter que explicar que ela não está interessada. Não é trabalho dela. Esses senhores que aprendam a ser gente. Ou que se dirijam ao Centro de Controle de Zoonoses para uma castração prévia.
Estamos fartas desse infantilismo que só favorece ao velho e torpe desejo de um ser que está defasado, obsoleto. E que mesmo assim continua ferindo, constrangendo, matando.
E que eles saibam, que do contrário do que eles pensam, do contrário do que dizem nas rodas de conversa dos bares, onde para lidar com suas calvícies galopantes, suas ereções intermitentes e suas inteligências de protozoários, inventam histórias de conquistas e acham que estão arrasando, para nós, eles não passam de seres ridículos.
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