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04/10/2024 às 13h00min - Atualizada em 04/10/2024 às 13h00min

A sociedade da fricção

Beatriz Aquino - Atriz e escritora
[email protected]
Figura meramente ilustrativa

 
Difícil dizer como chegamos até aqui. Se culpa das cidades e seus crescimentos vertiginosos que foram, junto com o aumento populacional, alargando fronteiras, estendendo suas pisadas para além das áreas verdes, criando bairros e bairros, depósitos improvisados de gente. Se culpa dessa impressão de termos o mundo à um toque das mãos. De que somos sofisticados e globalizados. Não sei ao certo.
 
Sem dúvida, a internet nos deu vantagens antes impensáveis. A tecnologia é um grande avanço humano, decerto. Mas não podemos esquecer que ela é uma tecnologia, que ela não é o humano, e sim apenas uma ferramenta do humano. Faço essa ressalva porque em toda história da humanidade existem exemplos clássicos do humano se vestindo das circunstâncias, se tornando a própria estatística. É a velha mania de se enveredar na mata sem ver o entorno e então se achar a própria mata na qual está mergulhado. Ou o próprio lamaçal.
 
Então não. Não somos seres tecnológicos, apesar de estarmos rodeados de tecnologia. Somos seres humanos. Gregários, mamíferos e pasmem, afetivos. Ainda não nos enfiaram chips no cérebro e circuitos robóticos no traseiro. Embora falte muito pouco para que isso aconteça, já que o derriére se tornou peça fundamental da expressão humana, com suas velocidades espantosas e suas elefantíases encomendadas. Mas, até que esse famigerado dia chegue, ainda somos, para o bem e para o mal, seres humanos.
 
Partindo desse princípio humano, acredito ser muito perigoso negar que em nós, além das redes e dos filtros sociais, existam carnes e artérias e sentidos e sentimentos e também uma psique pra lá de complexa. É muito perigoso negar todas essas variáveis em nós para nos adequarmos aos tempos pasteurizados da internet.
 
No que diz respeito às relações, Deus amado, nem sei por onde começar. Tudo virou, e caminha para lugares ainda mais obscuros, um carrossel alucinado de excesso de individualismo e cinismo. Nos já famigerados aplicativos de encontro, prateleiras e prateleiras de rostos se oferecem e se analisam numa gincana mecânica e desprovida de qualquer sentimento. Milhares de pessoas se acotovelam nessas plataformas reféns da falta de afeto. Reféns desse compromisso sobrenatural de autossuficiência que os mercados cada vez mais ávidos impõem. Pois que pessoas solitárias e que perseguem a perfeição de corpos, de carreiras e de aquisições materiais, são excelentes consumidores. Presas fáceis e manipuláveis.
 
E então, cada um vai construindo pelo mundo o seu próprio avatar interativo. Aprendendo sobre o jogo, se especializando no jogo. No jogo de ser, ficando cada vez mais distante de ser. As relações e as interações hoje começam e terminam sem nenhum compromisso, o menor que seja, mesmo o que do mínimo de educação humana, aquela que aprendemos na escola, quando ainda éramos pequenos e rudes no tratamento social. As pessoas, pela facilidade da internet, entram no teu cotidiano com a rapidez de um raio; curiosas, desdenhosas, empolgadas, pesquisadores científicos em busca de provar suas teses, especuladores, fetichistas. São variadas as versões. Todas elas altamente ambiciosas e egoístas. É só escolher o tipo.
 
Hoje ninguém mais precisa frequentar o mesmo ambiente, exercitar as pequenas éticas sociais para se aproximar de ninguém. Entra-se e sai de biografias vivas, de pessoas, de corpos, de vidas e histórias com a mesma rapidez e desprendimento com que se faz uma pesquisa no velho Google. O que vale é colher o máximo de informação possível num tempo mínimo possível pra avançar etapas do jogo. Que, aliás, não avança coisa nenhuma. O frisson mesmo é descobrir o novo, ou o pseudo novo, para logo partir para outra pseudo novidade.
O jogo mesmo, a intenção real é desmistificar o mito, derrubar de uma vez por todas essa coisa do sentimento. Porque ora bolas, já estamos cansados de lidar com coisas que não controlamos. Amores, sentimentos, decepções, chega né? Vamos esquecer tudo isso e ir para o jogo, para um lugar onde controlamos. (Controlamos?) Afinal é tão difícil ser humano.
 
Pois é. Mas não. Não chega. Não mesmo. E fingir que nossa pele ainda não é perfurável, que apesar de nos pensarmos tecnológicos, estamos diariamente sendo invadidos por informações sensoriais e afetivas, que por mais frias e seguras que essas interações possam parecer o nosso coraçãozinho continua absorvendo essas datas em seus batimentos, que o ar que respiramos continua levando oxigênio do nosso entorno pra dentro de nós. Que tudo que vivemos e ouvimos e vemos, mesmo que por ínfimas frações de segundo continua entrando em nós e construindo dentro de nós material humano. Fingir que tudo isso não acontece é o que há de mais infantil que o ser humano, hoje tão tecnologicamente evoluído pode fazer. É como dizer para uma criança que ela não pode jogar videogame por mais de dez horas seguidas, que apesar de divertido seus dedos vão doer, suas costas vão doer, seu corpo e sua alma vão doer. Óbvio, não é?
 
Quando estudamos teatro, trabalhamos a voz, o tônus, descobrimos que tudo acontece a partir de um centro; O esfíncter, o diafragma, o core. Aprendemos que o corpo precisa de estabilidade para se movimentar, para ser. Que se ele não estiver tonificado, nossas extremidades se tornarão pouco objetivas, flácidas, sem precisão de gesto, intenção, coisas pontiagudas e incômodas apontando para o nada. O centro emocional da humanidade, foi por muito tempo a religião. Por medo ou culpa, muitos seguiram respeitando alguns códigos civilizatórios. A filosofia já traz um aspecto mais amplo, a busca do entendimento do mundo, a reflexão sobre ele, o altruísmo, o enobrecimento da existência. Depois temos a ética, o exercício dela como papel social, a matemática do “Faça bem ao outro para que o bem venha até você”. Difícil discutir qual a mais acertada, acredito até que tal adjetivo não exista ou não se aplique. Mas o que se vê hoje, nesses tempos modernos, onde tudo se dilui, e que essa diluição, quando acometida pelo bombardeio das mídias, pelo seu apelo constante em nos tornar célebres e frios, individualistas e materialmente exitosos, ela vai nos afastando cada vez mais da nossa condição de criadores e portadores de afeto. E com isso nos presenteando com uma assustadora capacidade de impermeabilização. Sufocado nosso centro, nossa usina do sentir, nos dedicamos agora às extremidades. Que estão soltas, pontiagudas e perdidas, como membros semi amputados, beliscando aqui e ali um pouco de sensação e pequeníssimas amostras de sentimento de quando em quando só pra não gangrenar de vez.
 
São tempos tristonhos. Não temos mais nada que nos prenda. Nem a ética, nem a doçura, nem a ideia do amor. Tudo isso ficou muito antiquado. Discurso de gente fraca e necessitada. Pois que essa geração não precisa de nada. Nem de ninguém. Apenas de uma boa banda larga com um roteador afiado.
 
A ideia de ser venceu a experiência e a realidade de ser. Afinal, pra que ser um humano falível e complexo se eu posso inventar um ser rosado e bem resolvido nas redes?
 
Tempos tristonhos, sem dúvida. No que diz respeito ao sentir, não temos mais tônus, nem diafragma. Todos os nossos pontos de apoio e equilíbrio estão entorpecidos. E nossos orifícios, sejam eles morais, filosóficos, éticos, físicos ou sensoriais estão frouxos, dispersos, e nossas extremidades seguem volitando numa espuma de éter e fel.
 
A doçura em breve será exposta em museus pouquíssimo visitados. O afeto virará uma espécie de Santo Graal pós-apocalíptico. E o amor? Ah, esse não encontrará mais tradução e interpretação em nossas bocas robotizadas e patéticas.
 
Oremos.
 
 

 
 

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