13/09/2024 às 14h39min - Atualizada em 13/09/2024 às 14h39min

A gente

Beatriz Aquino - Atriz e escritora
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Foto meramente ilustrativa

 
Era uma gente pequena. Pequena de estatura e pensamentos. Suas cabecinhas alcançando pouco, entendendo pouco, mas ah, tão contentinha, tão alegrinha aquela gente! Uma gente de felicidades singelas, de risinhos frouxos e rubores e pequenos tremores que lhes faziam sacudir o corpo miúdo quando riam ou quando de algo se surpreendiam. Uma gente de pouca dramaticidade. Não, não reconheciam nenhuma tragédia que não fosse aquela de estar vivo, sendo que sobre isso nem pensavam, sobre nada filosofavam. Viviam. Apenas isso. Trabalhavam duro, sofriam e não reclamavam. Ou se o faziam era apenas para não destoar do coro dos grandes, aqueles homens altos e pensadores de olhar fixo no horizonte. Aqueles homens de verbo comprido e ar convalescente. Não. Aquela gente não. Aquela gente era forte e útil. Como um tronco de mogno fincado no meio do mato, no meio da cidade, no meio da calçada, no meio da vida. Cumpriam a sina. Era isso. Trabalhavam, suavam, achavam bonito suar. E depois, banhavam-se e comiam. Sempre risonhos, mesmo doentes, sempre gratos e servis como pequenos leitõezinhos com alma de gueixa, com seus passinhos curtos, com seus tamanquinhos em forma de casco, sorrindo, sorrindo e agradecendo a oportunidade de ser. E de servir. “Um pouco mais de bacon, meu senhor?” “Ah sim, claro, como não, como não? Leve a minha carne. Sacrifique-me. Sacrifique-me. Eu nem saberei do que dela falta. Nem saberei que aqui estive.”
 
Tão eletrizadinha aquela gente. Tão conduzidinha, tão coloridinha. Como pequenos autômatos, encaixadinhos, enfileiradinhos, obedientinhos. Como aqueles bonecos no jogo de pebolim, jogados de um lado para o outro, coloridos e compactados, quase sem rosto. Empaladinhos, jogados pra lá e pra cá. Alheios às mãos que lhes arremessavam, alheios à bola, ao gol, ao objetivo, ao jogo. Muito entregues e ordeiros, bem óbviozinhos, bem facinhos, como massinhas de modelar de cheiro e sabor tutti-frutti.
 
Ah e quando ganhavam algo? Se contorciam inteiros, muito frenetiquinhos, muito alegrinhos, quase embriagadinhos beijando as mãos grossas e duras de seus benfeitores, cheirando-as de leve, quase lambendo-as de tão gratos que eram, tão assustadinhos pela graça alcançada, fosse um pedaço de pão, uma fileira de tijolos, dois dentes que faltavam na frente da boca.
Ah, e se conseguiam consulta no médico, como comemoravam! Mesmo que demorasse seis meses, um ano, dois anos e meio. Mesmo que seus tumorzinhos estivessem crescidos, do tamanho de bolas de futebol, mesmo que morressem de descaso ou apatia, se sentiam tão dadivosos e abençoadinhos ao serem examinados às pressas pelo médico do postinho. E que júbilo sentiam quando lhe vestiam a roupa do hospital, limpinha! Ah e a cama também, limpinha! E depois gelatina e sopa. Depois da cirurgia, que honra, que luxo, que nossa, nossa! Sim, falavam muito a palavra nossa, muito assustadinhos e surpresinhos que eram. E se morressem, de descaso, de erro médico, de fome, de assalto, ah que fosse, que fosse! Era Deus quem assim queria. Ah, sim Deus resolvia tanta coisa em suas vidinhas que para eles tudo ficava assim tão leve, nada questionavam, nada queriam com muita gana, pois era pecado querer muito.
 
Era uma gente muita acanhada, muito envergonhada de ser. Ser era uma coisa alta, uma coisa luxurienta. “Ui não!” Eles diziam. “Não pode! Ai, ui! Faz até cócegas ser!” Eles diziam. Ser era pra quem podia. E eles podiam pouco, dormiam pouco, fodiam pouco, comiam pouco, viviam pouco. Era isso. Porque tinha um Deus que tudo decidia. E depois desse Deus, vinham os seus representantes com suas túnicas, seus ternos, seus livros grossos e suas palavras compridas. Eles decidiam. E aquela gente só vivia, só estava. Levadinha, na toadinha, de pezinhos pequeninos e certeiros, bem sincronizadinhos, com suas risadas e suas alegrias pequenas e singelas. Ah, que gente pitoresca aquela!
 
E os homens? Muito corretinhos, muito asseadinhos, muito lavadinhos, muito entroncadinhos, enchendo laje, construindo estradas, pendurados em prédios altos, como pequenas formiguinhas palmilhantes e laboriosas. E as mulheres, também elas muito certeiras. Lavadeiras, cozinheiras, parideiras. Pariam, pariam. Procriavam, procriava aquela gente. E achavam que era pecado viver muito e que era de pecado que morriam. Porque à noite… Hummm se deitavam e se esfregavam em seus homens e tinham seus pequenos gozos, seus pequenos orgasminhos bem reprimidinhos, seus gemidos rouquinhos e abafadinhos pelos lençóis. E aquela alegria ilícita então lhes acompanhava durante todo o dia e por isso carregavam bigornas sobre suas cabeças pequenas. A culpa lhes dizendo que eram maus e feios por gozarem e sentirem alegria farta apenas com seus corpinhos. Não! Nada! Não pode! Um Deus decidiria sobre eles! Eles nada sabiam, nada podiam. Ó, era tão difícil saber! Por isso iam, iam. Levados pela grande correnteza, como riachinhos, eternos corregozinhos.  Jamais afluentes. Jamais rio.
E envelheciam. Com suas cabecinhas pequenas enbranquecidas e cada vez mais cabisbaixas, com seus pulmões cada vez mais cheios de fuligem, seus estômagos cada vez mais acostumados à fome, com seus olhinhos cada vez mais embaçados e perdidos. Mas sempre alegrinhos e gratos. Muito gratos.
 
As mulheres, atarrancadas e sintetizadas, esmagadinhas pelo pé da Grande Coisa, da grande coisa que se movia sobre elas. Cortavam os cabelos curtinhos, práticos e ordeiros, elas com seus brinquinhos de argola douradas, com suas feminilidades aparadas, com suas vergonhas tosadas, leitoinhas rosadas e lustrosas, parideiras, mães, esposas, filhas e avós. Mas como mulher mesmo, viviam pouco. Bastava a idade da reprodução. Depois disso, tosadinhas e lustrosas, solícitas e cozinheiras. E faxineiras e lavadeiras e enfermeiras. Eternas mães. Ah, que gente mais carismática!
 
E em época de eleição? “Ah! Ui, Ó!” Quanta atenção recebiam! “Ai, ui, faz até cócegas!”. “O moço alto veio tomar café na minha casa, na minha casa assim pequena e tacanha, feita de barro e laje mal acabada!”  “Tomou água no meu copo!”. “Ai, ui! Faz isso não, seu moço! Ai meu senhor, olha que hoje ainda eu morro!”. Como eram procurados, bajulados. E nada entendiam. “Mas por que tanta cerimônia? Ai, ui! Não precisa disso tudo! Faz até cócegas essa atenção!”. “É voto que o senhor quer?”. “Ah, isso não é nada, nadinha!”.  “O quê? Vai me dar um tostão? Vai me colocar os dentes da frente? Vai levantar o muro da minha casa? Que bondade! Minha Nossa Senhora! Não mereço tanto! Ai que até morro de tanta vergonha, doutor!”. “Amanhã o senhor volta? Volta? Volta que eu vou lavar a toalha da mesa.”
 
Muito boazinha aquela gente. Boazinha, boazinha. E assim morriam. E nasciam. E procriavam, procriavam. Úteis e seguidores. E cantavam, cantavam. Muito alegrinhos, muito coloridinhos, muito faceirinhos, muto sonâmbulinhos. Que gente boa aquela!
 
 


 

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