23/08/2024 às 14h43min - Atualizada em 23/08/2024 às 14h43min

Em construção

Beatriz Aquino - Atriz e escritora
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Caipirinha, obra de 1923 de Tarsila do Amaral - Coleção particular (Schwartz, Edusp: 2021) - Reprodução Google

 
São quatro horas da tarde e dezesseis minutos. E percebo que ainda não encontrei uma utilidade para o amor. E essa coisa de dar utilidade para o amor nem fui eu que inventei.
Mas é fato que são quatro horas e dezesseis minutos e nada. A chuva deu uma trégua. A fonte da praça está ligada. Em cima da montanha um homem alto nos abraça. Observa a cidade. Nem sabe que eu, pequena e imperceptível, procuro, dentro da minha parca experiência sobre o assunto, encontrar alguma utilidade para o amor. Mas eu desconheço tanta coisa. Por exemplo, nunca entendi porque as motos fazem tanto barulho. Ou porque os amores engavetados e suas fotos cortadas ao meio ficam sobrepostos. O peito de Lúcia sobre a mão de Ulisses. O olhos de Marta sobre o vestido da mulher de vermelho que fuma cigarro na discoteca. Essas pessoas devem rir cântaros da nossa pressa em esquecê-los. Zombam da nossa ingenuidade.
Ainda não entendi a influência na conjunção dos astros quando uma dessas gavetas emperram.
Tive por muito tempo um gaveteiro antigo. Desses velhos, cheios de carunchos. Abrir uma de suas gavetas era um tremendo esforço. Lembro que nessa época o número de estrelas cadentes triplicou.
O Benjamim me disse que uma casa com móveis novos e em perfeito funcionamento era de extrema importância para o bom andamento da existência humana. Coisa de engenheiro. Não dei atenção.
Mas são quase cinco da tarde e ainda não encontrei uma utilidade para o amor. O sol hoje não veio e o homem na montanha continua nos olhando.
Invento então alguma justificava para o dia. Pego a caixa de ferramentas que fica embaixo da pia da cozinha e saio novamente pra rua. Pareço muito determinada com a minha Black & Decker na cintura.
"Esse é um bom ano", penso. O vazio não nos alcança.
Eu e o meu cinto de utilidades haveremos de consertar os rebocos dos muros de todas as escolas do bairro e também os buracos no peito daqueles que quase morreram de amor.
 
 

 

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