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09/08/2024 às 14h56min - Atualizada em 09/08/2024 às 14h56min

A mulher só

Beatriz Aquino - Atriz e escritora
[email protected]
Obra de Tarsila do Amaral - Reprodução Google

 
Não lembrava exatamente as circunstâncias que a haviam levado até ali. Como de súbito se descobrira velha, altiva e só a perambular pelas ruas de uma cidade que mal sabia o nome.
Era asseada, mantinha seus vestidos severos em bom estado, fazia pequenos trabalhos na casa de uma senhora ávara e arisca, que vivia repetindo: “Ah, essa minha casa de quinhentos e trinta e dois metros quadrados me dá tanto trabalho!” E fazia ares de sofrimento, a pulha, uma mulher que tinha tudo, que arrastava a existência em seus quinhentos e trinta e dois metros quadrados de ostentação, gozando a pensão do ex-marido morto e do pai militar também morto. Só não tinha doçura, leveza, ou dignidade. Era chata, medíocre e maledicente, passava os dias se esgueirando pelos corredores de seu mausoléu, preocupada com cretinices: a torneira do banheiro banhada a ouro que não brilhava mais como antes, o corrimão da escada que estava encardido, a mancha no mármore do hall de entrada. Chata e lamuriante, uma hiena rica e repetitiva que mal se dava conta de que envelhecia, de que morreria amargurada e só, já que todos à sua volta partiram antes dela, talvez por puro desgosto, e os filhos e netos não lhe dirigiam a palavra.
 
Eunice, esse é o nome da mulher que andava pelas ruas, aguentava. Cuidava das orquídeas da chata, vez ou outra lustrava o corrimão, caso fosse dia de festa. Mas só conseguia ficar ali por poucas horas. Duas no máximo, três se estivesse de bom humor. O risco de esganar a hiena era grande. Mas prestava-lhe esses pequenos serviços e assim, ganhava uns trocados, podia lavar suas roupas e estendê-las no subsolo da casa. Subsolo que daria para acolher duzentas criancinhas desabrigadas, mas que servia apenas para guardar a quinquilharia da velha, que guardava caixas, parafusos, garrafas vazias e estrados de madeira, coisas que um dia foram cama, foram um guarda roupa, uma cômoda. Os escombros da vida daquela mulher que a eles se apegava com unhas grandes e pontiagudas. Também ela um escombro ruminante e ácido. Ali, também no subsolo, em anexo, tinha um banheiro onde Eunice tomava banho e lavava os cabelos, sempre às quintas-feiras, que era quando a velha saía para almoçar com as amigas, outras hienas também chatas e esticadas, que mal conseguiam se equilibrar nos sapatos pesados, as costas curvadas pelo peso que carregavam no pescoço, as joias da família.
 
Eunice não sabia bem como havia chegado ali. Uma cidade pequena e aprazível, com pessoas sensatas e outras tantas imbecilizadas. Uma cidade cheia de ricos e pobres desfilando em suas passeatas de sempre: os pobres se arrastando sob o sol, vendendo coisas nas ruas, as jovens suburbanas exploradas, cansando as solas dos pés em seus turnos de nove horas nos comércios, enchendo as pernas de varizes para atender as madames, os velhos ricos sentados na praça, palitando os dentes, contabilizando os lucros, as propriedades. “Dobrando aquela rua tenho duas casas.” “No fim dessa avenida são meus dois pontos de comércio.” “Do meu terreno fizeram um prédio e assim ganhei três apartamentos.” E assim iam levando suas tardes, gordos, opulentos, cevados de ignorância, rindo alto. E palitando os dentes.
 
Longe dali, a Zona Sul, o Conjunto Habitacional. Outra cidade dentro da mesma cidade, porém com sua própria realidade, com suas ruas desordenadas, com suas casas construídas às pressas, com seus prédios minúsculos e quentes, onde briga-se pelo volume da música, pelo espaço no varal para estender a roupa, onde crianças desnutridas ou inchadas gritam alto, competindo a maior capacidade de seus pulmões. Os bairros com seus parques pequenos e mal irrigados, com seus brinquedos quebrados, com seus escorregadores mortais e cheios de ferrugem, com suas obras de drenagem e saneamento feitas com pincéis de maquiagem, coisa pra desavisado ver e crer em época de eleição. Esses bairros, Cohabs construídas em mangues, agora ilhas flutuantes de miséria e concreto, de casas com quintais que estavam sempre reclamando, sempre alagando, sempre regurgitando, os rios e córregos sufocados voltando em tempo de chuva, misturados ao esgoto entrando pela porta da cozinha, encurralando as mães, as avós e as crianças que gritavam ainda mais alto. O subúrbio com seus cães dormindo no meio da rua, com suas lajes mal caiadas, com suas festas, com suas pingas e seus incontáveis aniversários. Os sete anos do Cleyton, os nove meses de Ana Clara, as doze primaveras de Michele. Sempre tão animados e alheios, tão ávidos por um pouco de alegria e esquecimento. Tão pouco revolucionários, tão pouco inconformados com a realidade em que viviam. Bebiam e cantavam em suas casas pobres e alagadas, dançando por cima do esgotos fechados às pressas com um mão de cimento. Também eles tão cevados de ignorância quanto os velhos ricos da praça, donos de prédios e hotéis. E todos, palitando os dentes.
 
Eunice caminhava e via isso tudo. Observava. Via também imensa beleza, as colinas verdejantes, o rubro das castanholas, o róseo tinto das bouganvilles, o vermelho das acácias caindo sobre os casarões antigos que circundavam o centro velho. Lugar de praças de árvores frondosas e muita sombra, e canteiros bem cuidados com fontes e frescas águas. Longe do subúrbio e seus ficus amarelados, mirrados e secos.
 
Nos bairros do centro, a opulência das cores, das casas bem pintadas, o frescor das ruas largas e sem assombro. Ela caminhava. Caminhava também por outros bairros vizinhos. Gostava de ver as casas. Grandes, médias, pequenas, ricas ou singelas com seus muros cobertos de hera, com suas grades baixas e vermelhas, com famílias se preparando para o almoço de domingo, engrossando a fila da padaria, os frangos gordos e suculentos enrolados nos papéis brancos, a maionese, o pudim de leite. Via poesia em tudo. Ou em muitas coisas, apesar de ter envelhecido dura e só, sem saber exatamente como havia envelhecido dura e só. E como agora andava pelas ruas, austera e destacada.
 
Havia sido casada, tido uma família, disso lembrava vagamente, também havia morado em outras cidades, visto outros bairros, também eles pobres, fartos, cheios de alegria ou descontentamento. Lembrava de ter fugido de seu lar, disso se recordava, mas até hoje não atinara o motivo. Um dia simplesmente acordou e decidiu que precisava andar. Colocou duas mudas de roupa na bolsa de pano, pegou o dinheiro da feira da semana que estava em cima da geladeira e saiu sem olhar para a foto dos filhos e do marido no aparador da sala. Era tudo que lembrava. Não sabia se havia sido rica, pobre, bem educada. Tudo foi virando um branco, desbotando no trotar da caminhada. O pouco que sabia de si ouvia de outras pessoas, que comentavam os seus gestos precisos, sua voz articulada, voz que ela com o tempo economizava cada vez mais. Quanto mais andava, menos falava, mais esquecia de si. E por ser tão livre era que se agigantava sobre si mesma. Sentia-se imensa e misteriosa, vagando pelo mundo em seu exercício de observação. Diziam que talvez ela tivesse sofrido um trauma, a perda de um filho, a morte do marido, uma derrocada financeira. Mas ela achava tudo aquilo muito óbvio. Desculpas que as pessoas inventavam para se sentirem melhores, mais conformadas. Desconfiava, e isso lhe trazia secreto contentamento e orgulho, que ela apenas acordara com vontade de andar. De andar e de ser. E que para isso precisaria se livrar de todas as amarras. Havia tido coragem de existir sobre si mesma, ir além daquela que inventaram sobre ela. Um ato heróico e vigoroso, ela julgava. Embora o mundo preferisse colocar sobre o seu silêncio e sua solitude uma definição trágica.
 
Andava. Percorria as largas alamedas, as ruas estreitas e escondidas, alisava com os olhos as casas, os casarões, as casinhas, ensolaradas ou ensombreadas, coloridas ou desbotadas. Dezenas de possibilidades de vida. Vida que ela imaginava como numa novela, poetizando-lhes o cotidiano. Mas não se apegava a nenhuma, pois na condição de passante, ela poderia ter todas. E sobretudo, jamais perder nenhuma.
 
Estava velha, mas não lembrava exatamente que idade tinha. Não trouxera documentos nos bolsos desse seu novo eu. E a cidade, pequena e confiável, nada perguntava. Existira por anos assim, como uma sombra se esgueirando pela frente das casas, tomando banho escondido nas áreas de serviço, fazendo suas refeições num canto da cozinha. Em cada uma delas, prestando serviço, trabalhando um pouco, colhendo um pouco, sem dizer muito. Dormia nos fundos de um asilo, não era asilada, jamais poderia ser, livre demais que era para cumprir regras. Lhe deram então um quarto mínimo, usado antes para guardar mantimentos onde ela, magra e dura, dormia sem exageros, quase de pé. Sem pedir muito, sem dizer nada.
 
Naquela tarde, maio anunciava um longo inverno. Apesar dos coloridos das árvores, um vento frio abanava o rabo sobre as saias leves das moças dizendo-lhes que era hora de trocar o figurino. Sentou-se sobre um banco de pedra de uma rua alta onde se via toda a cidade. Gostava do final do dia, onde o pôr do sol transfigurava o cenário e toda a movimentação das ruas tomava ares feéricos. Nessas horas sentia uma calma absurda e achava que via Deus. Mas não um Deus comum, esse de igreja. Mas um Deus grande e macio, que se aconchegava sobre ela nas noites frias e lhe acalmava os soluços ou as palavras que corriam soltas pela garganta, quando ela, em pesadelo, lembrava-se mais da vida de antes, para logo depois esquecer, no primeiro gole de café da manhã que tomava no asilo.
 
Nessas tardes em que observava a cidade de cima, toda ela alta e livre, destacada de tudo e mesmo assim tão entregue a tudo, talvez sentindo mais que todos, talvez mais viva e vibrante que todas as pessoas lá embaixo, ela via Deus. Um deus que tinha cheiro e calor, um Deus que tinha seu rosto.
Deixou-se recostar a cabeça sobre a frieza do banco, as pernas magras e andarilhas estendidas sobre um tronco, observou o caminhar de uma formiga, tão laboriosa e caminhante como ela, ocupada em ser e existir para além dos muros. Depois viu uma borboleta cintilando entre a folhagem das árvores, um pássaro pequeno se alimentando, outro maior abrindo as asas, lá em cima um avião cortava o céu azul em sua fuselagem prata, tão alheio à vida de baixo, também carregando pessoas alheias do lado de dentro.
 
Alongou o olhar sobre a cidade. Se soubesse fazer conta, poderia dizer que havia sim percorrido cada pedaço dela, que conhecia cada rua, cada casa, cada jardim, cada barulho. Chorou. Se sentiu alegre e dadivosa. Mas sempre silenciosa sobre si mesma, não ousava chegar a conclusões ou impor qualquer arrebatamento sobre a própria existência. Temia perder o mistério, coisa que ela desconfiava ser o único motivo dela continuar andando. O sol deslizou por detrás das montanhas deixando as nuvens pintadas de amarelo rubro. Sentiu uma pontada aguda de paz no peito. O céu estava colorido, a cidade estava cheia, havia ainda muitas ruas a percorrer, outras cidades para ver. A brisa de maio era agradável, o banco que lhe acolhia era bom e familiar, Deus era macio e levava o seu nome.
 
Olhou mais uma vez para a amplitude do que via, a vista querendo ir tão longe quanto seus pés haviam ido. Respirou fundo, fechou os olhos. E foi então que morreu.
 
 
 

 

 

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