02/08/2024 às 13h11min - Atualizada em 02/08/2024 às 13h11min

A mulher que cortava cenouras

Beatriz Aquino - Atriz e escritora
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Foto meramente ilustrativa - Reprodução Google

 
Sentada às quase dez da manhã na cadeira de ferro e plástico trançado, ela tomava sol. ‘Nas pernas apenas, vitamina D’, dizia o médico. De uns tempos pra cá ela começou a pensar nessas coisas. O cachorro tentava lhe chamar atenção, ela ralhava com ele. ‘Deixe-me, menino’. Queria aquele pedaço da manhã só pra ela, antes que fosse se ocupar do almoço. Ou da vida. Antes que o sol depois das dez se tornasse nocivo e lhe levasse o resto de vitalidade do rosto. ‘No rosto nunca’, dizia o dermatologista. Ela obedecia. Protetor solar e um chapéu de abas moles que havia comprado no brechó e que por custar muito pouco, não se matinha firme, as abas caindo pesadas sobre seus olhos, não importava de que lado virasse. O chapéu azul de abas moles ornado com uma flor também azul de panos entrelaçados. ‘Rídículo’, ela pensou. Toda ela ridícula e satisfeita a tomar sol naquela manhã de segunda feira. Ouviu um pouco de rádio. Caetanos, Bethanias e Gals. E também Babies e Consuelos. ‘Que manhã rica!’, ela disse baixinho.
 
Pensou também na delícia de estar só. Sem um homem para lhe importunar a pele, lhe obrigar que arrumasse os cabelos e trocasse o velho pijama por vestidos esvoaçantes e coloridos nessa mania que eles têm de embonecar seus desejos. Ou seria da mulher essa mania? Se perguntou. Não quis responder. Não naquela manhã preguiçosa de sol onde ela com seu chapéu de abas moles, toda ridícula e satisfeita, teria como único trabalho metabolizar vitamina D e ralhar com o cão.
 
Dobrou a calça acima dos joelhos, olhou para suas pernas estendidas sob o sol. Precisaria de uma pinça, haveriam sempre de nascer pelos indesejados nos lugares mais improváveis, haveria sempre de surgir sobre esse novo-velho corpo, uma afronta, uma afirmação contundente de que ela não era uma deusa, uma boneca, ou qualquer coisa que houvessem inventado sobre ela, de que ela era apenas uma mulher vestida em pijamas aproveitando o sol. Examinou a textura da pele, exposta assim, sem atenuantes, sem uma meia luz ou uma taça de vinho, podia-se ver uma ou outra artéria cansada, aqui e ali um músculo cheio de preguiça, a circulação reclamando da já longa caminhada, das muitas horas de dança e dos famigerados scarpins. Cansava-se. Como mulher idealizada, perseguida pelo fetiche de ser bela, que ela às vezes nem sabia se era dela, se fora algo inventado pela mãe, pelo avô, pela bisa, cansava-se. Era pesado ser mulher. Ou ao menos era pesado ser aquela mulher da rua, que cumprimentava as pessoas com delicadeza, que arrumava os cabelos às sextas-feiras e pintava os olhos. Mas essa mulher de agora, em pijamas, com sua pele preguiçosa, ela também preguiçosa e dadivosa sob o sol, essa mulher era tão ampla. Tão confortável, tão cheia de erros e quedas, cada vez mais improvável nas redes, cada vez mais se afastando da beleza imposta, àquela que fazia os homens virarem a cabeça na rua para lhe acompanhar a cadência dos quadris. Essa mulher de agora, cada vez mais distante das delícias e dos deveres da beleza, da dádiva ou da obrigação do casamento, da procriação, da obrigação de impressionar um homem, e os amigos desse homem e as mulheres da família desse homem. ‘Tudo tão cansativo…’, ela pensou. Não. Essa mulher de agora ria de seus pelos, da sua pele distendida, de suas mãos mapeadas pelo manuseio da vida, vida que forjara com tanta destreza, com tanto desastre. Essa mulher de agora toda ela quase recomposta, quase toda equacionada, mas nunca satisfeita, querendo agora outras coisas. Essa mulher de agora quase completando o giro completo, finalizando a órbita em torno de si mesma. Essa mulher em estado de plenitude, mas sem definições românticas, a plenitude da falha, do entendimento, do erro, da ignorância, do sublime. Essa mulher de agora era inteira, quebrada, trincada, mas inteira. ‘Tão livre, tão livre!’, ela pensou ao estender os braços e se espreguiçar ao sol.
 
Sorria. Decidiu acarinhar o cachorro. Estava especialmente dadivosa naquele momento. Queria contar às outras mulheres, ainda cativas, ou ainda em processo de libertação, da sua recente descoberta. Falar da beleza de existir apesar de tudo, do gozo de plainar suave e irônica sobre todas as coisas. Sobre a carreira, os filhos, os homens, sobre o corpo. Sobre esse mesmo corpo que traz tanto prazer e tanta agonia. Dizer a elas o quanto o corpo pode ser casa, se soubermos escolher bem a vizinhança. Decidir com sabedoria e doçura quem a olha, quem nela entra. ‘Ah, nada como um olhar de ternura sobre um corpo cansado e heroico! Sobre o nosso, sobre o dos outros! Deixe! Deixe abrir as janelas! Deixe ver as suas rachaduras, e dobras, os cupins e os insetos que nela habitam. Essa é a sua casa’. Sim, ela estava especialmente poética naquele momento.
 
O cão saltou sobre ela exigindo mais atenção. Lembrou-se do almoço, olhou a hora no visor do rádio que agora vendia aos borbotões produtos de patrocinadores sem escrúpulos. Praguejou baixinho por estar atrasada e foi para cozinha. Esqueceu-se de tudo o que pensara minutos antes. Não pensava mais em plenitude ou libertação. Agora, menos poética e ridícula, ela era apenas uma mulher que cortava cenouras.
 
 

 


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