26/07/2024 às 15h21min - Atualizada em 26/07/2024 às 15h21min

A doçura do caos

Beatriz Aquino - Atriz e escritora
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Foto: Divulgação - Reprodução Google

 
É sábado, faz sol e eu ando. Na boca nenhum medo grande. Só medo de dar topada numa pedra. É muito feio mulher com a unha do dedão rachado, com esmalte por cima, muito feio. Desço pro centro, dia de feira, o verdureiro grita, o homem do queijo grita, a senhora que vende pêssego grita. Todo mundo grita e é uma alegria. Viver é esticar o passo. O resto a vida se encarrega. Com topada ou não a gente vive. Vou na loja de suco, quero caldo de cana. A loja de suco não vende caldo de cana, a mulher na minha frente da fila do caixa enrosca sua sacola de plástico no zíper da bolsa da amiga, a amiga derruba o sanduíche, o sanduíche vai direto pra boca do gato, o cachorro magro inveja a agilidade do gato, o mendigo dá uma pedrada na cabeça do gato, o mendigo rouba o sanduíche do gato, a pomba rouba o sanduíche do mendigo, a pomba é eletrocutada no fio de alta tensão, agora ela é comida pra outros bichos. Ninguém come o sanduíche. O mendigo lamenta, o cachorro lamenta, a amiga lamenta, não a pomba, mas o sanduíche.  O gato não lamenta nada porque ele não tem tempo pra isso. As duas amigas saem rindo da loja de sucos. Viver é esticar o passo.
 
O homem do caixa me aponta a barraca de caldo de cana, compro o caldo de cana, espero o caldo de cana, não tem limão pro caldo de cana, a moça sugere maracujá pro caldo de cana. Aceito. Não gosto de maracujá no caldo de cana. Compro peixe, dizem que é bom pros neurônios. Esqueço a verdura. Até que maracujá é bom com caldo de cana. Dizem que maracujá acalma. Mas nada me acalma. Sexo me acalma. Mas sexo não tem. Será que posso sugerir a inclusão de sexo na lista da cesta básica? 
 
Subo a rua, muita gente na calçada. Tem vinil, tem rádio, tem secador de cabelo quebrado, tem a Roberta Miranda na capa, tem uma repiboca novinha em folha, pronta pra uso, diz o homem que vende. Muita gente na rua. Pouco verde. Há duas semanas aquilo parecia um canteiro de alface. Alface com raiva faz mal ao estômago. Alface armado é estranho. Alface armado é ridículo. Que bom que acabou o alface. Agora dá pra comer outras cores. A rua tem cheiro de rua, a rua tem cheiro de tudo. O suco vai acabando e vou ficando desapontada. Como gosto de caldo de cana!
 
Em casa, preparo às pressas o peixe. “Cuidado com a espinha ao comer”, eu digo. Morrer engasgado é de lascar. Quero escrever esse texto. Uma hora antes eu estava na frente do computador e nada. É só ir pra rua e os dedos coçam. Gente é uma coisa cheia de pólen, o mundo é um cio só. O vizinho põe uma música boa. Não vou admitir que a música é boa porque não gosto do vizinho. Está acertado de que o vizinho é mau e eu sou boa. Escrever sobre vizinho é muito chato. Eu nem conheço o vizinho. Guardo o canudo do caldo de cana pra tomar suco de uva. Não quero manchar os dentes. Dentista custa caro. Tudo custa caro. Um sábado não custa caro.
 
Lembro do caldo de cana, eu na feira, o sol sobre a cabeça e o copo gelado na mão. Toda criança é livre. Todo sábado é dia de feira. É bom ser criança. Na feira tem melancia, pêssego, castanha, peixe. Só não tem alface. Os alfaces foram embora. Montaram uma seita onde tomam chá alucinógeno e conspiram o domínio do mundo. Um mundo inteiro verde e crente. Que medo desse mundo. Prefiro o sábado de feira. E caldo de cana. Que raios de escritora sou eu que escreve sobre caldo de cana? Não vou ganhar prêmio. É fato. Jabuti aqui só no quintal. Aliás, ainda pode criar jabuti no quintal? Eu não tenho quintal. Esse conto não vai render nada. Me concentro em temperar o peixe e gritar com o crápula do vizinho. Não gosto da música do vizinho. A mulher na minha frente da fila do caixa enrosca a sacola de plástico no zíper da bolsa da amiga, a amiga derruba o sanduíche, o gato, cachorro, o mendigo e a pomba estão nessa página e não sabem. Tem um monte de gente que é e não sabe. Viver é só esticar o passo. Eu adoro caldo de cana.
 



 
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