05/07/2024 às 14h41min - Atualizada em 05/07/2024 às 14h41min

O poder da narrativa

Beatriz Aquino - Atriz e escritora
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Laura é uma moça centrada, Márcia é doce e cordata, Amanda não é mulher pra casar. Estela tem muitos namorados. Mirtes bebe. Tânia não é boa mãe. Veja que de todos os lados e desde sempre as mulheres são vistas e catalogadas de acordo com seus defeitos ou virtudes. E vale observar que essas qualidades ou deficiências são elencadas por uma sociedade. Sociedade essa, aliás, ainda quase absolutamente patriarcal. Mesmo com os esforços já de algumas décadas daquelas que tentam mudar os nefastos pilares do estabelecido.
 
Marta não quer ser mãe, Thamyres não pensa em casar, Sara prefere viajar. Essas são frases novas e ainda repetidas com certa censura e admiração por mães e mulheres que em suas gerações não podiam contar com o luxo de tais narrativas.
 
Pois é. Temos caminhado, é verdade. Mas mesmo quebrando paradigmas devo dizer que o feminismo é um luta inglória. Ou quase. Digo isso porque é ridículo que ainda se tenha que gritar para dizer que se é um indivíduo com vontade e pensamentos próprios. Isso por si é uma anomalia bastante curiosa, visto que ninguém deveria, em uma sociedade sana, lutar para ser o que é ou o que deseja ser.
 
Ou seja, lutamos, mas lutamos contra um inimigo invisível. Invisível e implacável e que infelizmente, por incrível que pareça se multiplica a cada dia. É como lutar contra um bicho mítico (E é). Uma espécie de medusa com quinze mil cabeças. Cada vez que cortamos uma, outras mil aparecem. Vide a famigerada lei do estupro, o número alarmante de influenciadores digitais dizendo e ensinando que o homem é sim um caçador/provedor/comedor/superior e que pode, sim, dispor do corpo da mulher. Pois é, o machismo é uma fera difícil de matar. E por que? Ora porque ele não serve apenas a libido e ao ego doentio dos que dele se favorecem, mas porque ele é uma das engrenagens principais do capitalismo. Sim, o buraco é mais embaixo. E não é à toa que apesar de termos tantas representantes na política, no poder executivo e judiciário o número de feminicídios só aumenta. Os números que vemos hoje, não muito diferentes de décadas passadas, são reflexo direto de um conflito que está longe de ser sanado.
 
Sem dúvida vocês já devem ter ouvido falar no patriarcado e como ele inteligentemente se articulou para tomar e manter o poder ao longo de séculos. Em épocas remotas, os homens saíam à caça ou às guerras e eram as mulheres que organizavam o dia a dia de suas comunidades. Eram elas que cuidavam da plantação e da colheita, distribuíam rendas, cuidavam da saúde de seus habitantes e claro, faziam suas bruxarias, porque afinal ninguém é de ferro e longe da tosca compreensão masculina, elas podiam sim expandir suas sensibilidades.
 
As primeiras organizações sociais foram feitas por mulheres. Passado o tempo, se extinguido a necessidade da caça, escasseando as guerras, os homens voltaram para suas casas e entre entediados e surpresos, tentavam entender a sociedade que se formava a partir das mãos daquelas mulheres.
 
Ora, o matriarcado além de possuir todas as características de planejamento, otimização e liderança, trazia algo no mínimo intrigante. Naquela sociedade era permitido sentir. Ou seja, as matronas, as líderes, as sacerdotisas lideravam também com senso de maternidade e fraternidade. Coisa, claro, muito complexa e confusa aos olhos desses homens.
 
Acostumados a tomar tudo na força, sem perder tempo com subjetividades, os homens foram tolhendo essas organizações femininas. Afinal, era muito perigoso aquele mundo de pensamentos profundos, ervas, rezas e mergulhos nos próprios sentimentos. E a partir daí já se conhece o resto da história. Religiões foram erguidas a ferro, fogo e espada. Sacerdotisas queimadas, revolucionárias mandadas às pressas para os manicômios, pensadoras transformadas em meras prostitutas, vide o caso clássico caso de Maria Madalena, que na minha opinião foi uma das primeiras feministas da história.
 
Iniciou-se então a campanha da purificação dos corpos femininos que, segundo eles, por serem desobedientes às regras inventadas por eles, eram sujos, visto que sangravam, e perdidos, visto que eram limitados e vulneráveis. Ó... Ou seja, a partir daí a mulher passou a precisar constantemente de salvação. E o romantismo com seus folhetins com donzelas em perigo não ajudaram muito, é verdade. E muito rapidamente, para todos os lados, a mulher tornou-se o tal sexo frágil. Precisando da direção forte e segura, adivinha de quem? De quem? De um homem, é claro!
 
Ora, se antes a mulher guerreava, plantava, colhia, organizava complexas comunidades, estudavam as estrelas, falavam com os elementais, faziam rituais para a lua, aprendiam a curar com ervas, gestavam e pariam seus filhos, tudo isso sem a presença masculina, por que de repente ela se tornou tão frágil e limitada? Muito simples. Trata-se de pura estratégia de guerra, campanha publicitária mesmo. E funciona assim: Primeiro, quebra-se a ordem estabelecida. O que era bom passar a ser ruim e o que era virtude passa a ser defeito. Estabelece-se conflitos, infiltra-se seja pela discórdia ou pela violência, nas bases do que foi construído. Instala-se o caos. Criado o caos, basta eleger um salvador. Pode ser qualquer um. Aliás, a história mostra bem que qualquer imbecil de bigodes ou imitando uma pistola com as mãos atende ao serviço, visto que toda a engrenagem já está armada por trás, apenas esperando para colher os frutos e os corpos, de suas estratégias hediondas.
 
Então, queimadas as mulheres, sacrificadas as santas, higienizadas as putas, expulsas as dissidentes, o que sobra é um rebanho assustado e perdido, prato cheio para as lavagens cerebrais que sucederam e que ainda vigoram e se multiplicam até os dias de hoje.
 
A mulher então, antes peça fundamental na formação social, foi transformada em mero aparato biológico reprodutor. Sua única função era encontrar um marido que a amparasse e que em troca desse amparo, elas dariam, apenas seus corpos, seus pensamentos, seus desejos, ou seja, suas vidas inteiras.
 
Pode parecer distante esse período, mas não é. Não mesmo. Até porque até semana passada ainda falava-se sobre o quanto uma menina deve ser penalizada caso aborte mesmo tendo sido estuprada. E isso só acontece porque até hoje são os homens que possuem a narrativa da história. Desde que queimaram os livros, deceparam as pensadoras, incineram as bruxas e incutiram nas mulheres a nefasta ideia de culpa e salvação, são os homens que ditam o que uma mulher deve sentir, como deve se vestir, o que deve falar e por aí vai.
 
Não se iludam. Mesmo em tempos de empoderamento feminino e corpos tonificados exibidos em redes sociais, ainda ali, a mulher funciona como uma marionete a mimicar os trejeitos e vontades masculinas. Ou vocês acham que quem inventou essa coisa de traseiro na nuca, duzentos agachamentos diários e pernas que mais parecem saídas de um festival de elefantíase foi uma mulher?
 
Fiquem espertas. Desde que o mundo é mundo é vendido um ideal de felicidade para a mulher. Ideal que primeiro, atende apenas ao desejo masculino. Vide as dezenas de filhos que a mulher deveria ter no passado. E segundo: esse ideal deve lhe trazer sofrimento. Isso mesmo. Ontem os espartilhos, hoje as máquinas das academias, os preenchimentos estéticos. Ou seja, esse corpo sempre esteve à serviço do desejo masculino. E segue massacrado. E dessa vez a partir de um estratégia muito engenhosa, a sociedade que está à serviço do machismo, faz a mulher acreditar que é ela quem dita as regras. Ou seja, sejam as mais gostosas, as mais voluptuosas, as mais sexualizadas. Transformem-se em máquinas de sexo, mísseis pontiagudos e super erotizados! Postem suas bundas e seus peitos em tempo real e cores reais!  Cuidado... porque no final das contas a palavra de ordem é a mesma de séculos atrás: nos sirvam.
 
É... é preciso muita coragem e um mergulho profundo para se livrar ou pelo menos encontrar essas amarras que nos prendem, essas cordas invisíveis que nos conduzem, pois que a grande maioria das mulheres, pasmem, também é machista.
 
É preciso gritar e gritar e gritar para que comecem a nos ouvir. Porque ainda vejo que por todos os lados existe um aparato pra nos calar, para nos fazer baixar a cabeça. A impressão que eu tenho é que os homens não sabem muito bem o que fazer conosco. Eles devem pensar: por que elas simplesmente não ficam quietas e obedecem? Constato, a cada experiência como mulher nesse planeta que não temos lugar de pertencimento. Em cada rua, em cada compartimento de uma cidade, em cada sala de trabalho, ainda temos que nos esquivar, nos rebaixar, nos espremer para caber. E isso dói. Além de ser extremamente cansativo.
 
 
Ainda temos um longo caminho a percorrer. Lutar pelo lugar de fala é essencial para que nos escutem, para que nos entendam e para que a partir daí, as leis comecem a ser modificadas, os pensamentos ampliados, e finalmente possamos andar pelas ruas contando, além da segurança, com a empatia genuína da sociedade.
 
Até lá, muita leitura, muita procura, muita observação, muito voto consciente. E muita capoeira para se esquivar e dar conta desse eterno campo minado em que caminhamos.
 
O poder está sim em ser. Mas antes é preciso conseguir dizer em alto e bom som que se é.
Eu sou. E você?
 
 
 

 

 
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