11/03/2021 às 14h26min - Atualizada em 11/03/2021 às 14h26min
Primeira viagem à ilha de Fidel Castro
Por Odair Camillo - Jornalista
FOTOS: Brand-News
.
Há quase duas décadas, estive pela primeira vez em Cuba. Voltei mais três vezes, sendo que esta última, em janeiro de 2014, coincidentemente quando o governo brasileiro participava da inauguração do Porto de Mariel na ilha. Houve uma grande polêmica na época, já que o governo da presidente Dilma Roussef, através do BNDES, havia feito um empréstimo de US$ 682 mi para a obra, enquanto o povo brasileiro sofria com a falta de atendimento médico, remédio, educação, transporte e segurança entre tantas necessidades básicas. O caso está até hoje sendo questionado quanto aos critérios técnicos para esse empréstimo.
Bem, vamos à viagem.
Em novembro de 2000, a convite da Rede Sandals de Hotéis, da operadora Designer Tours e da Copa Airlines, desembarcava com mais nove colegas da imprensa turística nacional no Aeroporto Internacional José Martí, de Havana, para conhecermos um pouco da capital cubana e depois seguirmos para Varadero, a mais famosa praia da ilha, com estrutura turística de primeiro mundo.
Uma van com motorista e guia local nos esperava. O famtour iniciava com uma rápida passagem pelo Malecón - a avenida beira-mar, e ruas centrais de Havana. Embora já soubéssemos da situação precária em que se encontravam os prédios públicos e residenciais da cidade, observamos com tristeza e indignação o que haviam feito com a outrora bela capital cubana, agora com a maioria de seus prédios praticamente em ruínas. O guia, talvez envergonhado da situação de sua cidade, mas sempre esperto e pronto para defender Fidel, nos levou às principais atrações da cidade. Iniciamos pela Plaza de Armas, o local mais visitado na “Vieja Habana”, construída em 1582 ao redor da qual se encontram importantes prédios coloniais, onde paramos para almoçar no El Patio, um gostoso bar e restaurante na Praça da Catedral, local onde se apresentam diariamente os grupos musicais que alegram o local.
“Realmente, o cubano é um povo sofrido”, escrevi na reportagem do Brand-News à época que visitei Havana pela primeira vez. “Há mais de 40 anos, Cuba padece as consequências do embargo americano (ou da intransigência de Fidel Castro?). Quase todos são funcionários públicos e ganham uma miséria, vivendo com muitas dificuldades, chegando a pedir aos turistas nas ruas, coisas básicas como o sabonete e o dentifrício, produtos que eles não têm acesso há muitos anos. No entanto, eles não perdem o espírito esportivo e a musicalidade natural, envolvendo também os visitantes que se deliciam com sua hospitalidade e o ritmo de suas músicas.”
Depois do almoço, passamos rapidamente pelo Capitólio, um dos poucos edifícios preservados, com seu belo Salon de los Pasos Perdidos. O imponente edifício foi construído para sediar o poder legislativo, mas que se transformou num centro de convenções. Visitamos em seguida o La Floridita, restaurante e bar que se tornou famoso pelo inigualável daiquiri, e pela presença diária, na época, do escritor Ernest Hemingway. Perto dali, encontramos a não menos famosa Bodeguita del Medio para saborearmos os mojitos e daiquiris. Concluindo nossa rápida passagem por Havana, o guia também nos levou à Praça da Revolução, onde o destaque é o enorme mural com a foto tradicional de Che Guevara e, do outro lado, o monumento a José Martí, apóstolo e mártir da independência de Cuba em relação à Espanha. Já eram quase 18 horas quando iniciamos nossa viagem a Varadero, cerca de 140 km distante de Havana.
Castillo de los Tres Reyes Magos - onde a tragédia quase aconteceu
Quando já percorríamos a estrada em direção a Varadero, alguém do grupo sugeriu que passássemos rapidamente pela Fortaleza dos Três Reis Magos, um pitoresco castelo colonial construído em 1589 pelos espanhóis para proteger toda a região de Havana.
Erigido no alto de uma colina, próximo à rodovia, o seu acesso é dificultado pela péssima manutenção do caminho para se chegar até ele. Em dado momento, o motorista da van parou e disse que o melhor seria completarmos o trajeto a pé. Uma distância não mais do que um quilômetro. E foi o que fizemos.
Como estava sentado bem na frente do veículo, fui o primeiro a descer. Com a câmera fotográfica à tiracolo, caminhei alguns passos, e não percebi que à minha frente havia uma grande vala de concreto, com quase dois metros de profundidade. Ofuscado pelo sol muito brilhante àquela hora da tarde, pisei em falso e caí dentro da vala, batendo a cabeça numa de suas laterais e quebrando a clavícula esquerda.
Imediatamente os colegas vieram em meu socorro, descendo até o local e, com grande esforço e cuidados, fui retirado sangrando com um corte na cabeça, e levado imediatamente por eles a Varadero, onde o motorista da van sabia de um posto médico “especializado para turistas”.
Embora com muita dor, e com a roupa ensanguentada, não perdi os sentidos e aguentei firme até a chegada à cidade. Lembro-me bem que o posto médico era uma casa térrea, modesta, com apenas quatro salas.
O atendimento no posto médico em Varadero
Chegando ao posto, apresentei à recepcionista o Cartão de Assistência Médica da Travel Ace. Um documento imprescindível àqueles que viajam para outros países. Imediatamente ela entrou em contato telefônico com o escritório no Brasil, e em pouco mais de 10 minutos ela tinha a autorização para fazer todos os exames necessários para a “minha sobrevivência” na ilha de Fidel.
Durante a espera para ser atendido pelo médico, lembrei-me da fama que Cuba tinha perante outros países do mundo com relação à Educação e, principalmente à Saúde, serviços os quais o País caribenho se orgulhava em prestar à população.
No entanto, a minha decepção foi imediata ao ser conduzido pelo médico à sala destinada aos exames radiológicos. Esperava encontrar ali, aparelhos de raios X iguais ou melhores que conheci algumas vezes que precisei utilizá-los em minha cidade.
Na sala, desprovida de qualquer mobiliário, o médico pediu que tirasse a camisa suja de sangue e me assentasse a uma cadeira de plástico branca, essas que são usadas nos barzinhos para se tomar cerveja. Ali mesmo ele deu dois pontos na ferida da minha cabeça e, no mesmo lugar, aproximou um aparelho de rádio X que estava sendo sustentado ao teto por um arame grosso.
Achei estranho tudo aquilo. Imaginei então, que aquele aparelho deveria estar sendo utilizado desde que a Revolução foi deflagrada na ilha por Fidel, em 1959.
Em seguida, o médico informou que, com a queda, eu havia quebrado a clavícula, mas sem gravidade, e que iria imobilizar com faixa toda a região atingida. E foi o que fez.
Quando íamos saindo, lembrei-me de pedir ao médico as radiografias - e não querendo ser chato, solicitei que as colocasse num envelope. “Envelope? Desculpe-me, mas aqui não temos envelope!”, respondeu.
Agradeci a atenção e acabei colocando-as num pequeno espaço que ainda havia numa de minhas mochilas. Agora, era continuar a viagem e curtir o resort em Varadero!
O médico cubano que virou desenhista de moda
Alojado no Beaches Resort, da Rede Sandals de hotéis e resorts, com a ajuda do companheiro de quarto, consegui tomar um banho e me vestir. Toda a roupa ensanguentada que usava no momento do acidente, coloquei-a num saco plástico, deixei num canto do banheiro e decidi que não a traria de volta ao Brasil. Não queria guardar qualquer lembrança daquela quase tragédia.
Já do lado de fora do apartamento, olhei as bonitas palmeiras que compunham a paisagem, as vielas ao redor da enorme piscina cercada de espreguiçadeiras, com algumas pessoas que ainda aproveitavam os últimos raios de sol daquela tarde no Caribe.
Resolvi dar uma volta para também curtir, pelo menos visualmente, aquele lugar paradisíaco.
Nem bem havia dado os primeiros passos, observo que um senhor, vestido de branco e aparentando cerca de 40 anos, vem em minha direção e, com ar de surpresa, pergunta: “O que aconteceu com o senhor?”, referindo-se certamente à minha camisa social cuja manga esquerda não mostrava meu braço, oculto em seu interior, já que fora imobilizado com uma faixa junto ao corpo pelo médico no pronto socorro.
Em rápidas palavras, contei o que havia acontecido, e ele, mostrando-se interessado, prosseguiu na conversa: “E quanto o senhor pagou para ser medicado?” “Nada”, respondi, dizendo que eu tinha trazido comigo um cartão de assistência médica internacional. Ele entendeu minha resposta e continuou: “Ainda bem, porque se o senhor tivesse que pagar, seria mais de dois mil dólares”, disse com convicção. Fiquei surpreso com sua afirmação e perguntei: “E como é que o senhor sabe que seria esse valor?” “Porque sou médico, e estou acostumado. Aqui em Cuba, eles exploram o turista, e o dinheiro vai todo para Fidel”, respondeu.
O médico disse-me que ganhava US$ 20 por mês!
Como todo jornalista, essas informações aguçaram a minha curiosidade. Foi quando eu perguntei a ele o quanto ganhava como médico. “Eu recebo o equivalente a US$ 20 por mês”.
Fiquei surpreso, embora essa informação do salário de um médico em Cuba já fosse de meu conhecimento, porém, eu jamais acreditara. Impossível uma pessoa viver com tão pouco dinheiro, apesar de que eles tinham acesso a determinadas coisas. Mesmo assim... Para completar o diálogo, já que havia lido muito sobre a vida dos cubanos, fiz a ele mais uma pergunta: “E o que o senhor está fazendo neste resort?” E ele prontamente respondeu: “O senhor por acaso viu afixado perto do restaurante um cartaz comunicando que hoje à noite, após o jantar, haverá um desfile de moda? Pois é, eu sou o desenhista das roupas que serão exibidas. É uma maneira de aumentar um pouquinho o baixo salário que recebo.”
Observando que ele realmente estava usando uma roupa já bastante usada e cujo manequim se parecia muito com o meu, arrisquei fazer-lhe uma oferta. “O senhor gostaria de ficar com a roupa (uma calça jeans e uma camisa praticamente novos) que eu usava na hora do acidente? Ela está suja, mas é de boa qualidade.” O médico arregalou os olhos e respondeu: “Sim, naturalmente que sim! Minha esposa pode adaptá-la para mim!”
Então, combinei com ele que, após o desfile, eu entregaria o saquinho plástico com as roupas sujas. Ele agradeceu, quase chorando, e foi embora. E isso foi o que realmente fiz.
Um povo alegre, comunicativo, mas subserviente
Depois de uma semana de dolce far niente, chegou a hora de retornar. Com alguma dificuldade, e com a ajuda do motorista, coloco a mala e a mochila no bagageiro da van. Os colegas também se ajeitam na parte posterior do veículo. E este parte deixando para trás, o belo resort. No caminho, observo agora, com mais atenção, o que há para se ver durante o percurso. Quase nenhuma cultura nos campos, excetuando a presença de muitas bombas de petróleo, a maioria obsoletas, em busca de um petróleo raro, cuja produção mal dá para suprir metade da necessidade do País, tendo que importar o restante da vizinha Venezuela. Depois de quase duas horas de viagem, descíamos no Aeroporto José Martí.
Aproveitei a presença de todos os colegas jornalistas reunidos num dos espaços do salão de espera, agradeci a todos pela companhia e pelo apoio recebido. Em seguida me dirigi a “los aseos” e encontrei uma senhora bem velhinha à porta, segurando um pratinho em que estavam algumas moedas. Ao sair, coloquei uma cédula de US$ 1 junto às moedas. Ela agradeceu tanto, e chegou a ajoelhar-se de alegria. “Que tristeza!”, pensei comigo.
Quando me dirigia à fila de embarque, fui informado que, para meu conforto, eu viajaria na Classe Executiva, uma gentileza da Copa Airlines.
Durante a viagem, lembrei-me de tudo que havia acontecido. Lamentei a falta de perspectivas de um povo alegre, comunicativo, musical, mas subserviente. Um povo que até então, vivia sob o poder de um ditador que havia dizimado a vida de milhares de parentes e amigos para se manter no poder. Ainda na viagem, lembrei-me de outras ilhas que havia visitado, menores e nem tão belas, mas cujo povo vivia em melhores condições e, principalmente com “liberdade”.
Após uma rápida escala na Cidade do Panamá, quatro horas depois, desembarcava são e salvo em Guarulhos. Mas com o coração partido. Afinal, os cubanos não mereciam tanto sofrimento!