08/10/2021 às 15h37min - Atualizada em 08/10/2021 às 15h37min
Pra não dizer que não falei de amor
Por Odair Camillo - Jornalista
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Aparentemente, não há razão para estar tão tenso nesta manhã de abril, embora ainda restem duas horas para que ela chegue. Mas confesso que estou.
Ainda ontem, quando juntos confidenciamos o grande amor que sentimos um pelo outro, ficou estabelecido que ela viria até São Paulo para encontrar-se comigo e que eu a esperaria na Estação Rodoviária, às quatorze horas.
Estou em São Caetano, no grande ABC, sentindo uma saudade imensa dela. E essa espera já está me deixando nervoso. Sinto-me tal e qual um chefe de família exemplar e fiel, prestes a praticar o seu primeiro adultério.
Após um rápido almoço, parto direto para a estação de São Caetano, deixando meu carro estacionado no sistema de parquímetros naquele local. O problema de trânsito, estacionamento difícil e a falta de gasolina neste fim de semana, fazem-me optar pelo trem de subúrbio, muito mais rápido e econômico, além de proporcionar-me grande prazer ao rever as estações onde por longos anos, amigos e parentes ali trabalharam.
Depois de enfrentar uma pequena fila, chego finalmente ao guichê e peço ao bilheteiro uma passagem para São Paulo, Estação da Luz. “São seis cruzeiros, e apresse-se que o trem já vai partir”, diz ele.
Empurro a roleta com o próprio corpo, desço rapidamente as escadas que terminam num amplo e movimentado túnel que passa sob a ferrovia, subo uma dezena de degraus e saio finalmente no outro patamar onde o trem de aço está aguardando o sinal de partida.
Mal adentro o vagão e as portas fecham-se às minhas costas, iniciando a viagem. Caminho entre as pessoas à procura de um lugar para alojar-me. Somente no último vagão é que finalmente encontro um espaço que me caiba. Com algum sacrifício, encaixo-me nos trinta centímetros disponíveis. À minha direita está um rapaz, muito propenso a ser nordestino, dadas as suas características e pela enorme cabeça que pende de um lado, cansada, entregue a um pesado sono. À esquerda, um senhor de idade avançada nem percebe a minha presença, entusiasmado que está a folhear uma revista Playboy. Não deixo por menos. Meus olhos passam a deliciar-se, disfarçadamente, nas belas figuras coloridas que ilustram suas páginas.
E, novamente, lembro-me dela, que a esta altura deve estar também a caminho, possivelmente ansiosa por rever-me e, juntos, curtirmos este fim de semana.
As estações sucedem-se: Ipiranga, Mooca, Braz e, finalmente, Luz. “Até parece que todos resolveram descer aqui”, penso comigo, quando a multidão acotovela-se nas portas para descer, enquanto a que está do lado de fora, também esforça-se para entrar.
Aos trancos e empurrões sou conduzido para fora do trem que, incrivelmente, já se preparava para partir, justificando assim a pressa de todos.
Enquanto vou subindo as escadas que conduzem à saída, vou admirando a grande obra arquitetônica realizada pelos ingleses quando da implantação da SPR - São Paulo Railway, no início deste século, construída em estilo vitoriano e que, lamentavelmente, encontra-se em péssimas condições, quase no abandono.
Durante o trajeto a pé até a Rodoviária, a todo momento consulto o relógio para verificar se não estou atrasado. De modo algum quero fazê-la esperar. Pelos meus cálculos, o ônibus de Campinas deve chegar às 14h30, e ainda faltam dez minutos. À minha frente, um bilheteiro oferece-me um bilhete do macaco. “Fica com um pedaço!”. “Não, não gosto de macaco. Assemelha-se muito ao homem, e homem não presta!”. E pergunto: “O senhor não tem um bilhete da cobra? De preferência com a dezena 36. A intuição me diz que um dia ainda ficarei rico com esse número”. E ele não tinha.
Por fim, chego à estação rodoviária. O movimento é intenso e está difícil identificar os ônibus que procedem de Campinas. A maioria traz unicamente o letreiro com o destino “São Paulo”.
Começo a preocupar-me. À cada chegada, corro a perguntar de onde vem e que horas saiu. Nisso, percebo um ônibus que vem de Poços de Caldas. Procuro ocultar-me atrás de uma coluna para não ser reconhecido e de não ter que dar explicações. Afinal, a única coisa que me interessa naquele momento é esperar por ela, que já deve estar chegando.
Descubro, finalmente, que os ônibus que chegam da terra de Carlos Gomes ocupam a plataforma central, tornando-se agora mais fácil o meu trabalho de identificação. A cada dez minutos eles vão chegando, e nem sombra dela. Percebo que outra pessoa a meu lado também está sofrendo igualmente o problema da espera. Ele toma a iniciativa do diálogo: “Como é chato esperar alguém”. “Sem dúvida”, respondo, sem dar-lhe muita atenção. E o tempo vai passando, os ônibus chegando e minha ansiedade aumentando. “Será que ela ficou com medo de vir?”, penso comigo, “ou será que ela não encontrou passagem?”
A meu lado o homem começa a falar novamente. Minha preocupação faz com que nem preste atenção no que ele diz. Meus olhos estão voltados para as pessoas que começam a descer agora. E lá está ela.
Um grande alívio toma conta de mim. Ao ver-me, ela corre ao meu encontro. Com a voz trêmula pela emoção, despeço-me rapidamente do companheiro de espera: “Até breve, amigo. Minha esposa chegou!” Abril 1981