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25/10/2024 às 14h03min - Atualizada em 25/10/2024 às 14h03min

A pressa que os dias pedem

Beatriz Aquino - Atriz e escritora
[email protected]
Foto meramente ilustrativa - Reprodução Google
 
Sexta feira, 17h45, hora em que todas as almas do mundo têm pressa. Pressa de chegar, pressa de sair, pressa de fazer. A semana longa, o dia pesado e a criatura quer descanso, quer diversão e porque não dizer, um breve e qualquer arrebatamento. As ruas da Paulicéia entupidas de gente, últimas semanas do ano, compras, confraternizações. As pessoas ficam eletrizadas, como se pudessem viver nos poucos dias das datas festivas, a alegria de um ano inteiro, de uma vida inteira. Os últimos dias de dezembro são como a sexta feira do ano. Todos têm pressa.
 
Helena empurra o carrinho de supermercado, pensou que ia ter menos gente naquela hora, por isso saiu mais cedo, dribla uma senhora de andar arrastado e agora está no setor de frutas e verduras. Dezembro, calor, e tudo está em estado deplorável, levou dez minutos pra escolher uma cebola decente, as bananas ou estavam verdes ou quase virando geleia. Pensou em chamar o gerente, reclamar, dizer que era um absurdo vender produtos naquele estado, principalmente com aquele preço. Ultimamente estava assim, numa vontade de justiça incontrolável. Conteve o ímpeto, imaginou a cara do gerente, um homem franzino, de meia idade, cansado, esperando pelos últimos anos de serviço para dar entrada na aposentadoria e tendo que ouvir as reclamações de mais uma dona de casa mal amada, ou mais uma empresária estressada. Helena não era nenhuma delas, ou pelo menos não queria ser. Olhou mais uma vez para os abacates, verdes que nem pedra, ideais para serem consumidos em dois anos. Soltou um suspiro. Estava cansada. Trabalhava muito, se preocupava muito, se divertia pouco, transar então nem se fala. Notou que com o chegar dos anos e o acúmulo das derrotas, foi ficando mais dura, o corpo se fechando, formando um arco de defesa ao redor do coração. Era uma mulher prática, e ser prática lhe custara o brilho dos dias leves, o frescor do sorriso, a espontaneidade do rosto. Estava sempre indo ou voltando de algum lugar, sempre finalizando ou começando algo. A vida se tornou um carrossel alucinado, uma maratona quase insuportável, apesar dela se orgulhar de sua logística, da sua capacidade de dar conta de tanta coisa. E ela sabia que todas as suas amigas andavam assim, ocupadas, super produtivas e cansadas, todas habitando um corpo duro, correndo em uma espécie de transe, resolvendo coisas à espera do dia bom. O dia em que teriam tempo, o dia em que teriam paz, uma tarde de sol pra ir à um mirante, nadar no mar às cinco e quarenta da tarde, naquela hora em que está quase escurecendo, mas que uma luz boa ainda te banha a pele e te deixa bonita e plácida.
 
Todas esperavam por esse dia, cada uma do seu jeito, o dia da promoção, o dia da viagem sonhada, o dia de amar de novo, de sentir um frio na barriga. Helena pensou que todas as mulheres que ela conhecia poderiam se dar ao luxo de se proporcionar essas coisas, de viver os seus sonhos, mas ao invés disso elas esperavam, trabalhavam duro, dobravam o número de páginas do currículo, aprendiam novas profissões, desbravavam novas áreas, se tornavam mestras em quase tudo que faziam numa ânsia extrema de conseguir. E os desejos iam ficando pelo caminho, a pressa tomando conta de tudo. Não eram livres. Ainda se culpavam, ainda se puniam. Porquê, ninguém sabe.
 
Helena olhou de relance seu reflexo no vidro da geladeira de iogurtes; cansada, opaca, dentro de seus olhos uma luz antiga guardada que ia ficando cada vez mais discreta, comportada dentro da praticidade e da pressa.
 
Deixou o supermercado, a sacola pesada em uma das mãos, uma subida íngreme lhe esperando no caminho de casa. O sol estava quase se pondo, aquela hora boa, aquela luz boa e Helena pensou que algo não estava certo naquela vida tão produtiva.
 
18h15, sexta feira, dia de festa, os amigos passam a tarde combinando o local do happy hour, uma vontade imensa de tomar uma cerveja gelada, rever os camaradas, falar barbaridades, dar risada, pegar uma mulherzinha. Pelo menos esse era o caso do Caio. Com 19 anos e vindo de uma família de classe média alta, a vida para ele era como estar constantemente em uma loja de conveniência. Objetos, pessoas, bebidas, festas. Tudo era uma grande exposição onde ele, do alto do seu privilégio, escolhia, consumia e descartava.
 
Parou o carro diante do semáforo e aproveitou para se olhar no espelho, o som no último volume, que se dane, era bonito, tinha uma vontade louca de morder o mundo, de comer tudo de uma vez, a juventude, a fome. Seu carro, uma SUV último modelo, grande, imponente, uma espécie de pedigree ambulante que gritava alto seu status; segurança, conforto, privilégio. Seu carro era um extensor peniano que por enquanto lhe poupava o trabalho de ter que lidar com suas deficiências, o fato de ter o QI de uma ameba, de ser machista, ter ejaculação precoce e um cagaço danado das mulheres, apesar de comer muitas. Mas tudo isso a infância opulenta tratara de encobrir, a conta viria depois, com a calvície galopante, o cinismo, e os problemas no coração devido ao uso de anabolizantes e Viagra. Mas tudo isso viria depois, agora Caio se divertia.
 
Ele continua se olhando no espelho do carro, um braço malhado e tatuado do lado de fora com o relógio dourado, o mesmo fogo nos olhos, a mesma busca, a mesma pressa. Num reflexo, enfia o pé com toda força no acelerador, o sinal abre na mesma hora, ele sempre tinha sorte, os olhos ainda no espelho. Helena atravessava a rua, o sinal mudou antes que ela conseguisse chegar a tempo do outro lado da faixa de pedestre e ela é atingida em cheio pelo carro grande de Caio que pressionara o pedal com a arrogância dos jovens que pensam que podem tudo.
 
“Qualquer imbecil pode ser jovem. Quero ver é envelhecer com dignidade”, alguém escreveu. Helena não envelheceu, morreu ali mesmo, esmagada entre as enormes chapas de aço que compunham o para-choque daquela máquina de produzir palermas. As frutas e verduras rolando pelo asfalto, descendo a ladeira que ela tentava vencer.
 
Antes de fechar os olhos, naquela hora, naquela luz boa, Helena pensou que se esquecera de muita coisa em sua correria, que a vida não era uma aritmética precisa, que os dias passam como paisagens difusas vistas pela janela de um trem em alta velocidade e que por isso é preciso reter alguma coisa pelo caminho. Que os amores ainda são as melhores coisas a serem lembradas. E as piores também. Pensou que ninguém explica o percurso quando se chega ao fim do caminho. Que se nasce no susto e se morre no susto. Seja de acidente ou de morte natural, com a idade de cento e nove anos, a morte será sempre um susto. E a vida, ela agora descobria, também.
 
Nota: Helena foi sepultada ao meio dia do dia seguinte, pois todos tinham compromisso uma hora depois de seu enterro. Afinal ainda era fim de semana. Caio foi condenado com cinco anos por crime culposo. Cumpriu apenas seis meses e pagou o restante da pena distribuindo cestas básicas. Virou influencer, “mudou” vidas ao relatar o que ele chamava de “180 dias no inferno”. Seus pais, é claro, o apoiaram incondicionalmente.
 
 
 

 
 


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