18/10/2024 às 13h47min - Atualizada em 18/10/2024 às 13h47min
Envelheço na estrada
Beatriz Aquino - Atriz e escritora
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Foto meramente ilustrativa - Reprodução Google
Envelheço na estrada.
Me comem os olhos as curvas.
As linhas contínuas levam minhas últimas pulsações.
No retrovisor, tudo é passado. Memória tépida dos tempos vividos.
À frente, o para-brisa anuncia outonos; cabelos brancos, mãos cansadas e uma melancolia doce, quase bem-vinda.
O porvir é curto como a respiração entrecortada de um ancião conformado que tosse as dores da alma com abandono e resignação.
Toda sua história contada em um piscar de um olhar tremulante. Como uma vela incendiando sua última chama.
É doce o velho homem que há mim. É puro, finalmente puro. De uma ingenuidade talhada nas juntas atrofiadas.
Não há um ser que ao se ver em sua externa decrepitude não se volte para dentro.
É o espírito livre e ligeiro que fala dentro das órbitas enevoadas e rijas desse velho homem.
E como ele grita, e como ele dança, como ele brilha...
Mas o corpo, esse veículo agora intermitente, não responde mais ao menino. Não consegue mais dar forma às suas piruetas.
Esse sou eu. Um menino do vento preso em um corpo sem janelas. Mas não reclamo. É o ciclo da vida. E então, agora me acomodo no banco de passageiro dela. E não mais condutor, me deixo levar pela própria estrada. Essa velha companheira de tantas. Essa senhora sábia que conhece as curvas dos meus pés cansados e teimosos como ninguém.
Envelheço nela. Nela que morre e renasce em mim a cada linha pontilhada que passa por debaixo do carro, a cada metro engolido pela frente do possante, a cada quilometro mastigado por seus humores e amores e depois parido por sua indiferente traseira que acena fria e cinicamente aos que ficam.
Envelheço enquanto avanço conduzido por mãos que antes eu pensava frágeis.
Respiro calma e profundamente e me entrego ao doce ronco do velho carro tão bem cadenciado ao ritmo dos meus pulmões.
É... Nós dois soubemos filtrar bem a fuligem do mundo...
Me despeço dele, do veículo, e de todos que o acompanharam, em silêncio.
A algazarra familiar presente em outros invólucros à minha volta embala o longo sono que virá.
Fecho os olhos por dois segundos e os abro mais uma vez. A última para olhar a estrada. As linhas pontilhadas e contínuas estão lá e sei que sempre estarão. É a certeza da interrupção e da continuidade.
"Morrer em trânsito, transitórios que somos, faz todo sentido."
Digo pra mim em uma última vertente poética. Mas a rima não vem. É assim mesmo. Em seu último instante o homem não tem brios de traduzir nada. Ele é só aceitação ou só desespero. Eu acho que não sou nenhum dos dois.
Poesia mesmo é esse hálito doce que me sai da boca em forma de agradecimento e que vem lá do fundo, de um eu muito, muito antigo. Suspiro em derradeiro então.
E já quase decantado, soslaio as esquinas da vida, só pra ver onde vai morar em seguinte, o meu espírito. É a curiosidade da alma que não finda nunca. É a estrada que não sai de mim e que não quer nunca, terminar.
Molho o horizonte com minhas lágrimas. Aquele horizonte tão desejado e onde só chegamos em estado líquido ou gasoso. Fecho os olhos finalmente. Os do corpo e, por enquanto, os da alma. É bom chegar, é bom se diluir. Morrer não faz mal não...
As linhas pontilhadas dançam em arabescos luminosos na minha memória já quase exaurida. Mas não importa. Brancas ou amarelas, pontilhadas, ou contínuas, viver ou morrer, no final das contas, é tudo a mesma coisa...
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