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27/09/2024 às 13h34min - Atualizada em 27/09/2024 às 13h34min

Ontem

Beatriz Aquino - Atriz e escritora
[email protected]
Figura meramente ilustrativa - Reprodução Google
 
 
Ajeitou-se na cadeira. O voo 3756 da Canário Linhas Aéreas dava sinais de partida. Aquele tintilar de cintos, o farfalar de casacos e bolsas sendo guardados, senhoras desenrolando suas écharpes para se protegerem do frio que em breve faria na cabine. Ela também era uma senhora. Tirou uma pastilha de menta de uma pequena latinha guardada na bolsa de mão. Verificou mentalmente se havia passado desodorante. Tinha pavor de ser para os outros qualquer tipo de incômodo e empecilho. Ela que ia aos poucos desaparecendo, desbotando na frieza dos dias. Ela tão cheia de ontens. Era uma senhora.
 
O piloto deu as boas-vindas aos passageiros e apresentou a tripulação. Depois falou algo como altitude, pés e tempo bom. A senhora sempre bloqueava mentalmente o excesso de informações. Jamais entenderia os termos técnicos, principalmente sobre máquinas e despressurizações. Evitava também olhar atentamente para a aeromoça demonstrando as manobras a serem realizadas em caso de acidente. Esquivava-se. Eles que se entendessem com suas máquinas e suas engenharias. Ela era apenas uma velha indo visitar a filha. E no fundo, algo que também tentava não admitir ou pensar, era que achava essa coisa de voar um descalabro. Longe de querer negar as vantagens de se chegar tão rápido em lugares tão distantes, mas isso de colocar toneladas de aço e engrenagens no ar não era natural. Não era. Pois se os pássaros eram tão leves. O céu era pra eles. E só pra eles. Mas era assim. Desde que o mundo é mundo o homem inventa suas maravilhas e suas próprias perdições. Depois cada um que se ajeite. Pensou. “É o progresso!”, diziam. Pois sim. Cada um que se ajeite. E ela se ajeitava. Os filhos acharam um absurdo sua sugestão de fazer a viagem de ônibus. “Três dias naquele solavanco? A senhora não tem mais idade pra isso!”, disse-lhe a mais nova, a tola. Magra e rala, com sua voz esganiçada. E daí? Pensou. Não posso mais escolher pelo menos o jeito que vou morrer? Tão mais natural morrer de acidente numa estrada, ter seu destino cortado pelas mãos de um motorista cansado, prestes a se aposentar. Ou de um rapaz mirrado vítima de uma indigestão após comer um croquete estragado na Rodoviária de São José dos Campos. Mas não. Quiseram por que quiseram colocar a mãe no voo 3756 da Canário Linhas Aéreas. E lá estava ela, como um embrulho despachado, presa entre outros dois seres humanos que mal lhe dirigiam a palavra. Pensou também que mais bonito seria, mais adequado seria a ela e seus traços de senhora, sua roupa de senhora e seu broche dourado e decorado com pequenas safiras verdes escuras, viajar de trem. Ah, para isso teria modos! Os assentos de couro, as vastas janelas reproduzindo as novelas do mundo com cenas que mudavam há cada minuto, as valises organizadas no bagageiro aberto e todos os passageiros com ar de sonho e encantamento! Mas aquilo. Ah, aquilo… Uma caixa de aço impermeável, um submarino metido a besta que inventou de ganhar as alturas. “Jesus, aquilo não estava certo”, pensou. Mas estava. Diziam que estava. E ela aceitava. Estava velha e consentir fazia parte dos seus dias. O último desafio que a vida lhe impunha. Ser maleável ao estranho, obediente e flexível como uma massinha de modelar. Tudo para não causar incômodo. “A mãe agora vai ocupar o quarto que era do Pedrinho”. “Esse mês a senhora passa na casa da Heloísa!”, informavam. E falavam alto e espaçado, os pulhas. Como se ela também tivesse perdido, além de parte da audição, a lucidez. Não estava louca. Nem havia emburrecido. Apenas ficado velha, caramba. Mas afastou os pensamentos ruins, não queria se tornar uma senhora amargurada e desagradável. Ela que tinha como principal objetivo cheirar bem e não incomodar.
 
O avião taxiou pela pista, o piloto disse alguma coisa ininteligível naquela voz de caixa de som abafada. Em seguida, os barulhos das turbinas, as rodas correndo pesadas e rápidas pelo asfalto. O barulho aumentou ainda mais, as rodas fizeram menção de sair do solo, mas voltaram pesadas e bruscas lembrando que tudo aquilo era uma grande loucura, uma grande e louca aventura. Mais uma tentativa e aquela coisa toda, aquele vagão de trem prateado, aquele submarino atrevido deixava o solo ondulando as asas como se procurasse equilíbrio. E procurava. Então logo se via os telhados das casas, a copa das árvores, a antena dos prédios, a calvície de alguns pequenos montes, o pratear de um riachinho, que ia ficando pequeno, como um caco de espelho esquecido no meio da mata. O bicho envergou prum lado, uma das asas ficando visível pela janela, deixando o mundo torto, a praia indo parar no lado de cima da cidade. Ela pensou que se o mundo fosse uma caixinha, ou um daqueles globos de neve, toda aquela terra se molharia. Jamais havia visto as coisas por aquele ângulo. O azul do mar como uma folha que se dobrava sobre a cidade. Exibia-se o bicho, plainando com suas sabe-se lá quantas toneladas sobre o céu azul-chumbo.
 
“Tão perigoso existir!”, ela pensou. Inventam-se tantos modos de complicar as coisas. Não, não, não... Por mais bonito que fosse aquilo de chegar mais perto do céu, não havia graça, não estava certo. Não estava. Tão melhor o balanço ritmado do trem… O rio no lugar certo, as árvores na altura certa, as folhas quase ao alcance da mão. E agora aquilo. Aquele frio na barriga, aquela sensação de quase morte. E a cara deslavada dos marmanjos nas outras poltronas fazendo de conta que não estavam quase se borrando de medo. Que gente mais blasê. Nenhuma oraçãozinha na boca, nenhum fechar de olhos pra pedir ajuda. O mal do homem era esse, não se contentar com sua pequenez. Queriam sempre tudo. O mais alto, o mais impossível. E conseguiam, na maioria das vezes. Se eram mais felizes assim isso já é outra história. “Mas e o progresso?!”. “E a penicilina?”. “E quem vai levar vacinas e alimento para as crianças da África?”, eles diziam. “Eu sei lá!”, ela pensava. O que sei é que sou uma velha presa dentro de uma máquina, sentada entre dois estranhos que estão fingindo demência, fingindo sentir apenas alegria e encantamento pelo que viam pela janela.
 
Respirou fundo, tentou se acalmar. Notou que suas mãos escurecidas e enrugadas, agarravam-se à poltrona da frente, crispadas como as garras de uma velha coruja. Ajeitou-se na cadeira, alisou o vestido de lã grossa que havia escolhido para a viagem. Era velha, mas nada a impedia de continuar composta, apresentável. Se morresse que pelo menos estivesse decente.
 
Mas porque pensava em tudo aquilo? Censurou-se. Para logo depois se justificar. E no que mais poderia uma criatura pensar estando a quarenta mil pés de altitude dentro de uma caixa de ferro? Pigarreou para disfarçar o nervosismo. Pegou outra pastilha na bolsa. Tomou um gole de água antes. Decolado a coisa, podiam usar a bandeja, comer, assistir um filme. A aeromoça, muito bem vestida e maquiada, lhe serviu café. Estava quente e cheiroso e ela achou aquilo um luxo. Como aqueles mimos que concedem aos prisioneiros em seus últimos minutos no corredor da… Não! Não falaria mais naquilo. Pensaria em outra coisa. Na doçura dos netos que a receberiam. Nos dias na chácara do genro, na companhia da outra filha, essa robusta e nada esganiçada. Pensou que em breve não poderia mais fazer aquelas viagens, que em breve seria apenas uma coisa sentada na poltrona da sala ou no quarto de visitas. Que lhe dariam comida na boca, que trocariam sua roupa e fariam sua higiene. E então ela não se importaria com mais nada. Nem com altitudes ou toneladas, nem com partidas ou chegadas. Pensou também que se a vida era aquilo, uma coisa tão cheia de fatalidades e sendo mais fatal delas a finitude, o apagamento de si mesmo, então não havia mal em desafiar as circunstâncias, aproveitar o máximo dos dias, colocar um pouco de cor nas horas. Pois bem. Que fosse. Que fosse. E naquele momento teve até um pouco de simpatia com os homens e suas ideias revolucionárias. “Danados eles. Sempre inventando”.

Mas a máquina rufava, rugia suas turbinas, as asas enfrentando a ventania, rasgando as nuvens. Tudo tão dependente de tudo, de pequenos circuitos, fios e irrigações. De microchips e radares e torres de comunicação e óleo e gasolina e vistorias bem ou mal feitas. Dependente do tamanho da olheira do piloto, da boa vontade do fabricante em usar as melhores peças, da atenção do mecânico ao fazer os reparos, afinal aquelas máquinas não tinham apenas um ano de idade. Algumas já haviam, assim como nós, enfrentado suas tempestades.
 
Mas era tudo tão sincronizado, tão eficiente e por isso mesmo tão frágil. E se uma peça desencaixasse, uma coisa superaquece, se as nuvens lá fora aumentam, se a visibilidade não for boa, se as olheiras do piloto forem fruto de uma grande desilusão amorosa e ele, com sua pouca vontade de viver, imprimir, de certo modo, seu humor sobre aquela máquina? Sim, aquilo era uma máquina. Máquina que era invenção humana e que como toda invenção humana era frágil e perigosa. Que dependia de tantos outros elementos e fatores. Da honestidade do vistoriador, da ética das companhias aéreas. Tanta coisa dependendo de tanta coisa. Uma máquina prateada flutuando acima das nuvens querendo chegar à algum lugar. E dentro dela um número grande de pessoas, todas elas também querendo chegar à algum lugar.
 
Dormiu. A cabeça apoiada no ombro direito. O cabelo cortado às pressas para a viagem amassando de um lado. Sonhou um sonho pesado de névoas e chuvas e sol. E também de vozes distantes que não reconhecia. Acordou com um pequeno sobressalto. A aeromoça recolhia os copos apressada e sorridente. O piloto de novo falava em alturas e neblinas e tempo bom. Ensolarado. Ele dizia “Ensolarado era bom”. Pensou. Minutos depois as grossas rodas tocavam o asfalto da mesma cor. Um barulho forte e maciço de chegada e alívio. Como era toda de chegada, alívio e medo feita aquela coisa.
 
Acompanhou a fila de passageiros até a saída da aeronave, depois até às malas, depois até o portão de desembarque onde a filha, a mais robusta e não esganiçada, a esperava. Abraçou os netos. Estava tonta, levemente desorientada, mas lembrou de sorrir. O jantar ocorreu sem grandes emoções. Apenas a doçura dos pequenos, os relatos da filha, o murmurar do genro, um pouco de café e aquele conforto que se sente perto daqueles que amamos.
 
Uma hora depois do jantar pediu para se recolher. De banho tomado, desfez a pequena mala. Repousou o broche dourado no criado mudo, deitou-se na cama do quarto do Pedrinho, apagou o abajur, levou a coberta até o peito e morreu.
 
 


 

 

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