17/06/2024 às 15h52min - Atualizada em 17/06/2024 às 15h52min
Carne muda
FONTE: Beatriz Aquino - FOTOS: João Ferreira (Xuão)
A atriz e escritora Beatriz Aquino durante o espetáculo teatral “Recortes - A mulher e seu corpo público”, que faz uma crítica social sobre a desvalorização do corpo feminino, o descaso e a naturalização dos abusos sofridos por esse corpo
Ora, não é de hoje que o corpo da mulher é manipulado ao bel prazer de um patriarcado infame. E já vou adiantando que não medirei palavras nessas nem tão poucas linhas que seguem. Desde épocas remotas, o corpo feminino, fetichizado até as últimas células, é uma commodity masculina. Segundo eles, esse corpo nasceu para lhe servir. Pois se foi feito a partir de uma ínfima costela dias depois de um deus entediado criar outro homem entediado, esse corpo tem mesmo é que limpar, passar, cozinhar e claro, servir ao prazer promíscuo, destruidor e doentio desses senhores. Então, lábios, vulva, canal vaginal, colo do útero, útero, trompas e óvulos, tudo pertence a eles. O clitóris eles tratam de esquecer, porque por um acaso é o tal ponto do prazer e pra quê uma mulher precisa disso, não é? Aliás, ainda nos dias de hoje, em algumas culturas esse pontozinho “incômodo” é cortado ainda na pré-adolescência numa cerimônia hedionda, que defende que uma mulher não pode ter acesso às mesmas sensações masculinas. Percebam que de todos os lados, do Oriente ao Ocidente, existe e sempre existiu todo um aparato feito para oprimir, controlar, mutilar e escravizar esse corpo.
Quando um grupo pequeno e também hediondo (essa palavra não me sai da cabeça) se junta pra decidir às pressas, aliás outra coisa que não entendo. Pressa pra quê? Por acaso uma menina de doze anos, estuprada pelo pai ou pelo tio, grávida e perdida pode ir muito longe? Francamente. Eu, pessoalmente fico puta da vida de ter que falar sobre isso de novo e de novo e de novo. Se os homens soubessem o quanto é difícil acordar pela manhã e entre os diversos afazeres como pagar boletos, escrever relatórios, gerenciar equipes, levar os filhos na escola, ainda ter que defender seus orifícios. De ter que proteger seus mamilos, sua boca e sua bunda na fila da farmácia, na fila do banco, de ter que tapar os ouvidos para os gracejos e as piadinhas sujas dentro de um supermercado enquanto você ao mesmo tempo tenta lembrar da lista de produtos que precisa levar pra casa. É exaustivo. É chato pra caramba. E mais chato ainda é saber que a coisa não para. Que o perigo não acaba. Que o muro não cede, que as portas de saída são poucas, pequenas e sempre, sempre de emergência. Homem nenhum pode saber como é ouvir que uma lei, uma lei gente, veja bem. Não se trata apenas de uma opinião, um debate, mas de uma lei. Uma lei que define como uma mulher pode sentir, até onde ela pode ir. Uma lei lhe dizendo que não importa se ela tem onze ou sessenta e cinco anos, se ela quer ou não, se a porra do seu esfíncter foi parar na virilha estraçalhado por um pênis cinco vezes maior que o seu tamanho, uma lei lhe dizendo que não importa se dói, se a criança ou a mulher vai lembrar da cara, do cheiro, do grito, da força bruta de seu estuprador, que os gemidos dele irão lhe acordar no meio da noite e que ela vai reviver isso quase todos os dias até ficar velhinha. Uma lei lhe dizendo que mesmo passando por tudo isso, sentindo tudo isso, se ela engravidar, ela terá que carregar essa gravidez. Nome e condição que muitas das vítimas sequer tem idade para conhecer o significado. Uma lei que diz que se ela ousar tentar fazer parar a dor do seu corpo e da sua alma retirando de dentro dela aquela recordação nefasta, ela pode ser presa e pasmem! pegar uma pena maior do que a do seu agressor.
Realmente não consigo entender como uma bancada, metade dela composta por mulheres, pode tomar uma decisão dessas. Honestamente não sei mais até onde essa quadrilha de lunáticos que infelizmente vem tomando gosto e forma no país e que diz defender os direitos da família brasileira pode ir. É tão cruel, tão mesquinho, é tão tantas coisas que nem dá pra listar aqui.
Esse tipo de pensamento me faz lembrar dos médicos sádicos dos campos de concentração nazista, brincando com aqueles corpos fragilizados, realizando experimentos, esticando seus medos, vendo até onde seus ossos frágeis e suas mentes atemorizadas conseguem ir. E claro, tudo sempre em prol de uma causa nobre. A porra do homem e toda essa gente doente são alucinados por feto. Basta ser um feto para ter direitos infinitos. Mas o que fazem dele depois que ele nasce? Para onde vai essa criança, ou em muitos casos, para onde vão essas duas crianças, a recém-nascida e a criança estuprada transformada à fórceps em mãe? Para o esplendoroso sistema brasileiro de proteção ao menor? Para suas casas de “acolhimento” onde sabemos que muitas dessas crianças também são abusadas? Quando essa roda vai parar de girar?
Não consigo parar de pensar nos filmes de ficção científica onde mundos superpopulosos começam a escravizar corpos que eles consideram não humanos (alguma ligação com nosso passado de colonizados?) para que estes sirvam de alimento. Ora vejam, sei que não exagero. Nas fábricas de carne não é assim? Para produzir as famigeradas vitelas, filhotes bovinos, são amarrados ou presos em baias ínfimas para que se movam o mínimo possível e assim não criem músculos. Porque a carne tem que ser macia, jovem, quase recém-nascida para agradar um paladar grotesco. Galinhas são presas em galpões imensos, com luzes florescentes acesas dia e noite para que assim não distingam o dia da noite e comam por horas e horas. É preciso engordar rápido, crescer rápido, procriar rápido, para servir ao abate. Porque a fome lá de cima é grande. E tem pressa.
Para que serve essa famigerada lei senão para atender um grupo de homens que estupram crianças tendo na ponta da língua discursos de decoro e decência? A quem ela atende senão homens condenados por filmar meninas no banheiro, religiosos que aprisionam esposa e filha, lhes privando de qualquer contato com o mundo exterior e que engravida as duas? Nesse caso em específico, a menina de onze anos só foi informada que estava grávida no oitavo mês de gestação, quando sua professora finalmente denunciou o caso. Até quando vamos ter que gritar, escrever, sair às ruas pra dizer que isso tudo é muito cruel?
Estamos cansadas, iradas, atônitas, putas da vida mesmo. Sempre que um assunto desses surge fica claro que estamos e estaremos sempre em perigo. Que retrocessos como esse são como ondas gigantescas a lamber anos e anos de luta. Que ninguém entende que além da lei em si, a mínima menção dela cria toda uma cultura de apropriação e reapropriação do corpo feminino. Que os estupradores, geralmente parentes próximos das vítimas, que já se valiam do medo destas, vão ter mais argumentos para continuar agindo, que terão no vocabulário mais uma ameaça para que essa vítima continue calada. Que essa lei é sim um duro golpe em nossa liberdade, que ela é o retrato claro de que ainda somos um corpo à serviço, que pode e deve ser vilipendiado, massacrado, que servimos ao prazer de um patriarcado que não descansa nunca, que se articula, que se reúne às escondidas para confabular sobre até que idade nossas ancas aguentam um parto, até onde nossa carne aguenta ser rasgada. E quanto anos pegaremos caso reclamemos ou ousemos gerenciar a extensão do estrago que um estupro traz.
Revolta é o nome. Revolta é o sentimento. Uma lei dessa é coisa que dói em todas as fibras, em toda nossa carne, da gengiva a ponta do pé. Ter que lidar com isso, ter que escrever cartazes, pintar o rosto, sair às ruas mais um vez, ter que gritar, que espernear para defender o óbvio é extenuante. E sinceramente não vejo grandes saídas. Visto que não dá pra argumentar com loucos. Visto que mesmo diante do óbvio e da crueldade estarrecedora, milhares e milhares de pessoas defendem a tal lei. Mães, esposas, filhas, e claro, uma fila gigantesca de homens com o dedo em riste defendendo a tal lei em nome da família brasileira. Como se as mulheres contrárias a essa lei fossem um monte de devassas que querem apenas abortar sem cerimônia o fruto dessa devassidão.
Francamente. Me faz lembrar as seitas hediondas, olha aí a palavra de novo, as organizações religiosas que escorraçavam e matavam mulheres caso essas não se submetessem às suas demandas doentias. Religiosos, líderes de comunidade, sempre esses homens com escrituras nas mãos ditando costumes, benzendo as letras fundamentais de uma comunidade com os mesmos dedos com que estraçalham as genitálias de suas filhas. É isso mesmo. É feio, é sujo, é pesado. E acreditem, é real. Há relatos de delegadas, médicas, legistas, que são obrigadas a examinar as genitais de bebês estuprados por parentes. O estrago é grande. O mesmo se dá nas crianças de dez, onze anos que não param de chegar nesses mesmos lugares. Alguém quer pensar nisso? Conseguem imaginar a cena? Conseguem imaginar essa mesma criança mutilada e agredida levar uma gravidez adiante?
Precisamos de um olhar minucioso sobre a questão. Isso sim se faz urgente. Precisamos começar a ouvir as mulheres e considerar seus pensamentos. Imaginar, que poxa, talvez elas, sendo donas desses corpos subjugados e utilizados há séculos, tenham mais propriedade para falar sobre o assunto. Que talvez, quando elas dizem que estão cansadas, cansadas de tentar fazer seus chefes entenderem que eles não podem passar a mão, que eles não podem comentar sobre esse corpo, que talvez quando elas dizem que não dá mais para pegar um ônibus lotado e ter que colocar a bolsa para trás para proteger a bunda, ou na frente para proteger as partes, ou cruzar os braços para que não toquem em seus peitos, elas tenham razão no que falam. Que quando elas dizem que estão cansadas de apanhar dos maridos e dos namorados, que quando elas engrossam a sala de espera das delegacias para pedir mais uma medida protetiva contra um companheiro, que talvez quando uma criança diz que a porra do tio passou a mão nela e a obrigou a fazer sexo oral é a porra do tio quem tem a culpa e não ela. Tem algum jeito de fazer essa gente enxergar o óbvio? Até quando vamos continuar gritando para uma manada de insanos?
É preciso parar essa máquina. É preciso parar essa usina de produzir carne fresca, feita para alimentar o gozo de uma sociedade estúpida. Quando uma lei diz que uma menina estuprada merece mais castigo que seu estuprador ela está deixando claro o valor que ela dá a esse corpo. Que esse corpo, segundo essa lei e tantas outras absurdas e ainda vigentes, não merece respeito, empatia, voz. Que ele deve se calar, servir e procriar. Para que venham outros corpos, também fragilizados, também vulnerabilizados, filhos de estupros, jogados nas casas de adoção, rodando na esteira de uma cadeia alimentar sórdida como vitelas servindo ao paladar cada vez mais doentio de uma gente que não se envergonha de levar a luz do dia a atrocidade de suas convicções.
A carne está cansada. A carne está rasgada. A carne está sangrando. A carne está cada vez mais jovem. Há uma carne dentro de outra carne. Uma carne de violência que cresce dentro de uma carne amedrontada. A carne está aterrorizada. A carne dói.
E ai dela se gritar…
Por Beatriz Aquino - Atriz e escritora
WhatsApp: (35) 9 9715-1221
NOTA DA REDAÇÃO - “Recortes - A mulher e seu corpo público”, encenada por Beatriz Aquino, é uma peça teatral que traz uma reflexão sobre o papel da mulher na sociedade e a apropriação pública do seu corpo.
A peça documental, que estreou no Sesc Poços de Caldas em 2023, tem a direção de Nando Gonçalves e traz um espetáculo que foi erguido a partir de relatos verídicos de mulheres que sofreram abusos e faz uma crítica social sobre a desvalorização do corpo feminino, o descaso e a naturalização dos abusos sofridos por esse corpo.
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