Armazém do tempo

Jornalista, publicitário, escritor e professor universitário
17/03/2025 14h51 - Atualizado há 2 semanas
Armazém do tempo
Figura meramente ilustrativa - Reprodução Google

 

Antigamente existia um lugar chamado armazém.
Um tempo em que cliente era chamado de freguês. Éramos, então, fregueses do armazém e o nosso nome, muitas vezes, com uma referência familiar (“Paulo da Dona Filó”) era anotado em uma caderneta, juntamente com os gastos diários, que saldávamos no fim do mês.

Fiado vinha da palavra confiar e era empregada diariamente.
As compras eram somadas em folhas de papel de embrulho e a caneta (bic) ficava atrás da orelha do atendente, que geralmente era o próprio dono do armazém: o seu Toninho - que também tinha nome. Este costumeiramente nos cumprimentava e perguntava ainda sobre a nossa família.
- Como vai sua mãe? E seu pai, melhorou da gripe?

Os produtos, na época chamados de mercadorias, eram colocados no chão mesmo, ou em cima do balcão de madeira que vivia cheio de anotações à caneta e os cartazetes feitos à mão indicavam os preços.
Os sacos de estopa abertos pelo chão mostravam as mercadorias (feijão, arroz, açúcar cristal, macarrão) e o tato era um sentido que fazia muito sentido. Havia ainda, um cheiro no ar que a nossa memória olfativa nunca conseguiu definir e nem sentir igual.
O nosso dinheiro era em papel apenas e geralmente vinha amassado em nossas mãos, juntamente com as moedinhas retiradas do cofrinho, aquele porquinho de plástico.

Tudo parecia uma bagunça só, mas que nos passava uma sensação de proximidade, de aconchego mesmo, como se fôssemos parte de uma única família.
Porém, o tempo - sempre ele - abriu-se para o novo e tratou de fechar os armazéns.
Hoje, quem nos atende já não é mais o seu Toninho, (aliás, onde andaria o seu Toninho?), mas sim o crachá de um funcionário, cujo nome não me lembro.
E nós, os clientes, sem nome, sem mãe, nem pai, viramos um número no computador e os produtos apresentam seus preços em códigos de barras.
O armazém virou supermercado, o balcão de madeira virou gôndola e as mercadorias viraram marcas.
A caneta virou calculadora, a caderneta virou checkout e nós nos viramos para achar os produtos.
O dinheiro em papel virou cartão de crédito ou débito que tem o nosso nome em letra miúda e uma senha que a gente vive esquecendo.

Dizem que nós somos o “rei” e que tudo ali existe para satisfazer nossos desejos e necessidades.
Perdemo-nos em meio a tantos produtos, centenas de marcas, embalagens e rótulos, promoções que nos atropelam.
O consumo vive a nos consumir. Estamos no Big, no Hiper, no corredor do “Wall Morte”.
O nosso carrinho se enche, o nosso bolso se esvazia e a gente se enche de alegria, afinal, estamos em um lugar de gente feliz, como diz o locutor do local.

Compramos o que todos compram, com dinheiros iguais, pensamos iguais, somos iguais perante a lei da oferta e da procura. Viramos consumidores, clientes anônimos de um mercado super.
E nos dá aquela vontade imensa de voltarmos a ser fregueses novamente e encontrar pela frente o seu Toninho a nos cumprimentar pelo nome.
Que saudade, no armazém do tempo, dos tempos do armazém.

 

 


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