04/06/2024 às 15h59min - Atualizada em 04/06/2024 às 15h59min

Derrota ostraordinária

Lauro A. Bittencourt Borges - cronista gastronômico, viajante compulsivo e membro da Academia de Letras de São João da Boa Vista
Instagram: @lauroborges
Restaurante Pau do Índio, Peruíbe, SP, janeiro de 2024: minha derradeira experiência com ostras

 
Curioso, indaguei à minha mãe sobre as conchas disformes que eram exibidas no recipiente do modesto ambulante que circulava sob um sol senegalesco. “São ostras, quer provar?”. Pelo tom de voz sem muito entusiasmo da oferta, percebi que as coisinhas estranhas nada apeteciam dona Ana Maria.
 
Aquele típico rompante adolescente me fez aceitar. O senhor de pés descalços e pele tostada da praia agachou-se à minha frente e, com extrema destreza manuseando uma pequena faca, começou a abrir meia dúzia de moluscos. Gotas de limão e uma pitada de sal ele jogou sobre a gosminha que repousava sobre a outra metade da concha. “Deixa escorrer na boca e engole, não precisa mastigar”, ensinou o tiozinho ao jovem sentado na areia, cabelo descolorido, sem medo do novo. Fui arrebatado instantaneamente por aquele inexplicável gosto de mar, gosto de desafio, gosto de uma estrada de sabores que eu começava a trilhar. Era Peruíbe, litoral sul paulista, meados dos anos 1980.
 
Desde então, batizado, comungado e crismado no paladar da iguaria, algumas centenas -milhares talvez - de ostras mundo afora eu devorei. Josi, que sempre se manteve distante delas, se deixou levar pelas caipirinhas na paradisíaca Praia dos Carneiros em Pernambuco. Era a Semana Santa de 2011. Ela sucumbiu a meus apelos e experimentou… uma, duas, três, quatro… Vivaaaaaa! Naquela sexta-feira sagrada, eu consegui evangelizá-la e ganhei uma companheira “ostraordinária” de esbórnias.
 
Num outono gelado, estávamos na Grand Central em Manhattan, Nova Iorque, esperando o trem para Norwalk. Como o comboio demoraria quarenta minutos para partir, entramos num Oyster Bar na legendária estação. No meio daqueles engravatados de Wall Street, consumimos no balcão, com cerveja e Aperol, uma dúzia delas. O que me chocou não foi o preço exorbitante da porção, mas o copinho de ketchup que os norte-americanos servem como acompanhamento do molusco. Ostras com ketchup, ianques? PQP!
 
No ano passado, o amigo Leandro Balloni, que gozaria um feriadão retirado com a família em Cananéia, perguntou se eu queria algo de lá. Só um ser insensível não liga ostras a Cananéia. Só um ser insensível não liga ostras a amigos que também delas gostam. Nem todos são parceiros “ostraordinários” à mesa, coisa que Luisinho Galli e Ellen são. E dos bons!
 
- Leandro, meu querido, um casal amigo estará conosco na farra “ostraordinária”. Pode me trazer doze dúzias? Não quero miséria.- Quantas?! [o timbre vocal dele transmitia incredulidade]
-Doze dúzias, isso mesmo, cento e quarenta e quatro ostras.
 
Fiz um grande preparo ferramental para a gloriosa noite de vinte e dois de novembro de dois mil e vinte e três. O Mercado Livre nos muniu de faquinhas e luvas específicas para o manejo de ostras. Mesa linda, gelo e vinho branco em abundância. Arriscamos até umas gratinadas.
 
A temperatura amena na Fonte Platina, a prosa solta, o Chardonnay, a MPB na Alexa, o caldo denso do bem viver. Vai daí que no embalo irresistível do encontro, dizem alguns dos três que comigo estavam, fui o autor do delito contra cinquenta delas. Prefiro contabilizar em dúzias e dizer que comi quatro, é menos agressivo, mais civilizado.
 
Nalgum momento daquela reunião, algo começou a se rebelar nas minhas entranhas. Silenciei, sofri quieto. Interações monossilábicas e visitas sucessivas ao banheiro entregaram aos companheiros meu lastimável quadro gastro-intestinal. Capitulei e tombei vergonhosamente nas quarenta e oito horas seguintes. A quantidade ingerida, alguma estragada no meio das boas, uma intolerância tardiamente adquirida? Não consegui identificar até agora o motivo de minha fragorosa e triste derrota.
 
Em janeiro deste 2024, voltei a Peruíbe. Relutante, no incrível restaurante Pau do Índio, cedi ao instinto e abocanhei apenas uma. Uma mísera ostra! Caí novamente, sob os idênticos estrondos abdominais de meses antes. Assumi minha humana fragilidade ante o molusco e, na mesma Peruíbe onde a paixão brotou, fiz votos de definitiva abstinência do prazer que me deleitou por quatro décadas.
 
 
 

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