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12/03/2024 às 16h53min - Atualizada em 12/03/2024 às 16h53min

Alma flecheira

Lauro A. Bittencourt Borges - cronista gastronômico, viajante compulsivo e membro da Academia de Letras de São João da Boa Vista
Instagram: @lauroborges
Lauro e Josiane Borges em dois momentos: no Armazém da Vila e no Chico Biella

 
Nalgum dia da década passada, 18h30 em Poços, eu me abastecia na Panedota com as essenciais baguetes de levain. O horário do jantar se aproximava e comer na cidade era uma opção. Pedi à Fábia Batel, exímia padeira, uma dica de taberna para satisfazer meu apetite e minha necessidade de conhecer lugares inéditos. Ela não vacilou: “O Armazém da Vila, não tem erro, é a sua cara. Ah!, antes da refeição, o aperitivo pode ser no botequim que fica colado, a três passos, o Chico Biella”.
 
Minha fé em indicações para comer é cega. Tomei o rumo da Vila Cruz, um dos primeiros bairros de Poços, forjado com o desembarque maciço de imigrantes espanhóis. No século vinte, a elite do Centro da urbe alcunhava pejorativamente os habitantes da Vila Cruz de “flecheiros”, numa alusão jocosa a índios de tribos distantes. Hoje, o cidadão flecheiro se orgulha de suas origens, bate no peito e faz questão de ser assim chamado.
 
Astrud Gilberto nos recebeu com bossa nova no boteco. “Água de Beber” rolava gostoso na playlist. Rolaram também as sugestões do garçom: chips de jiló, coxinhas (a melhor da galáxia!) e caipirinha de três limões com rapadura. A tasca flecheira da avenida Champagnat flechou meu coração. O Chico Biella, intencionalmente ou não, trouxe um quê do espírito carioca à beira do vulcão.
 
A mesa ao lado, n’O Armazém, ficava também despojadamente na calçada. Vanessa da Mata cantava suave a minha dúvida ao passear pelo cardápio: “O Que Será?”. Foi spaghetti ao alho e óleo com steak au poivre. O êxtase foi tal que raras vezes me permiti ser apresentado a outros itens da carta. A definição da cozinha heterodoxa d’O Armazém da Vila? Não tem, mas eu arrisco: cozinha contemporânea e ecumênica que congrega as crenças do dono.
 
E quais são as crenças do dono? Não ser chamado de dono é uma delas. Novamente, eu me atrevo e divago: Flávio Molinari é o cara que está de passagem por lugares bacanas, juntando, aprimorando e compartilhando suas experiências e prazeres. Reservado, ele resiste ao protagonismo pessoal e prefere os holofotes voltados para sua comida, sua proposta e seu restaurante. Ok, Flávio, perdoe-me então minha breve indiscrição.
 
Filho de restaurateurs, a afinidade com as panelas veio do negócio dos pais e da independência que a mãe lhe concedia para preparar seus próprios repastos. Quando voou com as próprias asas no métier, de alguns tombos brotou a vontade de montar um bar de vinhos. “Era minha paixão desde os dezesseis anos, eu queria um espaço pra curtir o vinho de forma descomplicada.” Era O Armazém da Vila nascendo em 2016. Depois veio o Chico Biella e a Hamburgueria Villa Lobos, todos no quarteirão flecheiro da Champagnat. O sujeito boêmio que estuda música desde a infância - reza a lenda que ele já tocou clarinete com um trompetista n’O Armazém - e que adora charutos, discretamente, vai escrevendo nas páginas das enciclopédias de Poços um conceito ímpar de fazer e servir rangos. E a saga continua…
 
Vinícius Beretens, andradense, operário do mercado financeiro e residente em Poços, foi outro impiedosamente flechado pela esquina d’O Armazém. Habitué da casa, tantas foram as idas, que a amizade com Flávio decorreu das conexões recíprocas e das bençãos de Bacco. “Vamos abrir um restaurante italiano?”, provocou Vinícius.
 
Vai daí que no nada flecheiro cruzamento da rua Mato Grosso com a rua Ceará, o porão repaginado de um magnífico casarão centenário abriga o novíssimo e promissor Polenta, cuja culinária italiana tradicional tem no cardápio um respeitável rol de pastas e antepastos. Aquela Bota fundamental da mamma, de afetos e emoções, abraça no Polenta com uma arquitetura esplendorosa, elegante, ornada com arte e referências à pátria da lasagna. Mas o que envolve mesmo é a clássica receita, o prato generoso, o carbonara, o puttanesca, o matriciana, o cacio e pepe, o molho bolognesa, o pecorino, o guanciale, o parmegiano, o prosciutto, o tomate, a manteiga, o azeite, o pão, a sardela, o vinho, a polenta...
 
Enfim, naquele ambiente sofisticado de um imóvel aristocrático, o que sai das caçarolas tem a alma flecheira dos fogões domésticos, tem a beleza simples das ceias lautas que nutrem, aquecem, reúnem e encantam.
 
SERVIÇO:
Polenta
Endereço: Rua Mato Grosso, 121 - Centro - Poços de Caldas (MG)
Funcionamento: Quarta à sexta, das 18 às 23h; Sábado, das 11 às 23h;
Domingo, das 12 às 16h
Instagram: @polentacucina 




 
 
 


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