25/08/2022 às 14h00min - Atualizada em 25/08/2022 às 14h00min

De frente ao portão de saída

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A visão foi se clareando na medida em que o trem do tempo se aproximava da Estação. Ao adentrar a última curva antes da chegada, o apito soou mais uma vez, perpetuando na memória o som da Maria Fumaça que se perderia no tempo, emudeceria, viajando apenas nas lembranças, às vezes, ao se pensar no passado. Um som mágico que, embora sendo apenas um apito, falava de lágrimas, de despedidas, falava de sorrisos e de chegadas. E de tantos amores ele falava...
O ranger das rodas de ferro do trem nos trilhos da ferrovia, de repente, anunciou a próxima parada. Lá estava o sino pendurado ao lado da porta do guichê de passagens. O chefe da Estação, uniformizado tal qual um militar, mãos cruzadas para trás sobre as nádegas, também estava lá, postado no lugar de sempre, empertigado sobre a plataforma. Era ele quem anunciava as partidas dos trens, acionando aquele sino por meio de um pingente de corda pendurado ao alcance de suas mãos. O sino das despedidas...
Ele só anunciava as partidas, nunca as chegadas. Por isso o sino não tocou quando o trem parou na Estação. Maria Fumaça sim, carregando um sininho dourado sobre sua cabeça, ela chegou toda feliz batendo-o feito uma louca. Louca de alegria, pois ela sabia que trazia consigo os sorrisos da chegada. Quando da partida, todavia, era o sino da plataforma que tocava, e Maria Fumaça se deslocava lentamente, respeitosamente, pois ela sabia que levava consigo lágrimas de despedidas.
 
Maria Fumaça era assim - uma locomotiva romântica que mais parecia passear do que viajar, mais parecia dançar do que rodar sobre os trilhos de ferro. Seus apitos tinham uma linguagem muito especial. Às vezes, uma lamúria, um gemido. Às vezes, um regozijo, um festejo.
Numa das paredes da Estação, onde o trem imaginário do tempo estacionou, estava escrito: “Ano de 1950”. Foi aí, nesse tempo, que desembarcaram as primeiras lembranças marcantes de minha vida. Uma casa pequena situada na esquina de uma rua que não era rua, apenas um pedaço de rua sem saída, mas que na verdade tinha um portão de saída. Sim, um portão pelo qual ninguém, em sã consciência, ousava transpor em termos definitivos. É que no fim do pedaço de rua havia um cemitério de muros brancos e um grande portão frontal feito de ferro. Era este pedaço de rua sem saída e o grande portão de ferro que demarcavam o ponto de saída da vida.
De frente a casa também não havia rua. Havia uma trilha que se contorcia morro acima até alcançar a casa grande onde morava o dono daquele pedaço todo. Ainda de frente a casa, mais afastado um pouquinho, havia um depósito de madeira bruta, toras enormes, empilhadas à espera do esquartejamento final, que se transformariam em tábuas e se separariam para sempre.
Do outro lado do pedaço de rua que não tinha saída, embora tivesse o portão de saída, havia um depósito de pedras de quartzito e arenitos, laminadas e cortadas à mão em formas quadradas e retangulares, empilhadas em dezenas de colunas à espera de compradores. A serraria de madeira pertencia a um dos filhos do dono daquele pedaço todo. O depósito de pedra pertencia a outro filho do dono daquele pedaço todo.
 
A pequena casa branca situada na esquina da rua que não era rua, pertencia à filha do dono daquele pedaço todo. O cemitério - Sabe-se lá...
Era ali, naquela pequena casa branca de esquina, que nós vivíamos. Eu, meus pais, meus três irmãos e minha avó materna. Eu deveria ter uns cinco anos de idade. Meu irmão mais velho, seis anos. Abaixo de mim, duas irmãs. Meu quarto irmão ainda viria, mas naquela época ele ainda não tinha chegado. Éramos, pois, dois meninos e duas meninas.
Em noites de lua, quando suas luzes prateadas destacavam as proeminências e enegreciam as depressões, tudo era meio fantasmagórico nas vizinhanças da pequena casa branca. As toras de madeira pareciam corpos enormes tombados com as cabeças na escuridão e as costas iluminadas pela luz prateada da lua, fazendo com que a imaginação infantil inventasse monstros que alimentavam medos, criasse movimentos e ruídos assustadores. As pilhas brancas de pedra pareciam em constante movimento dadas as diferenças dos cortes e da altura das pilhas. Além disso, pareciam estar acesas pelo reflexo que faziam à luz da lua. E ali, mais ao fundo do pedaço de rua, os túmulos do cemitério pareciam flutuar como que querendo sair do lugar para se juntarem todos na esquina. Para piorar um pouquinho mais, o gungunar dos corujões noturnos sonorizava todos os medos que a minha imaginação criava.
 
Os contadores de causos adoravam amedrontar as crianças com suas histórias mirabolantes. Às vezes, histórias para criança ouvir e obedecer à custa do medo. Às vezes, histórias que os próprios adultos acreditavam como sendo reais, embora não factuais, apenas estórias.
Alguém, todavia, apesar de todas as crendices daquela época, cuidava para que a nossa imaginação não se enveredasse pelos caminhos do medo, pois o medo é um criador de fantasmas e de perigos que, embora inexistentes, podem se plasmar nos pensamentos tornando-se reais e capazes de fazer um grande mal. Cuidava esse alguém para que a imaginação infantil caminhasse por outras sendas que não as sendas dos fantasmas imaginários. Que fossem as sendas das alegrias, das fantasias, da obediência, do bem.
A religiosidade de vovó Alzira, mesmo sob os rigores dogmáticos religiosos, dos paradigmas e das próprias crendices, lá, distante no tempo, quando não se falava em fé raciocinada, pois raciocinar sobre a fé poderia soar como blasfêmia (pecado grave); essa religiosidade, de alguma forma, contribuiu para a expulsão de alguns fantasmas que assombravam a minha imaginação, principalmente.
 
Tudo começou quando de uma “novena para as almas”.
Vovó Alzira reuniu toda a família, toda mesmo, pai, mãe e filhos, para rezar um terço às almas. Até aí tudo bem. Naquela época, rezava-se muito mais que nos tempos atuais e a religiosidade era tratada com muita seriedade. Imagino que por obediência e tradição e nem tanto por consciência e raciocínio. São os tais paradigmas religiosos e sociais, muito mais rígidos naquela época, cujos dogmas eram tidos como ordens de Deus: inquestionáveis e absolutos. Resquícios ainda da Idade Média e que, de alguma forma, ainda predominam nos tempos atuais. Ainda bem que o “temor a Deus” vem sendo trocado por “amor a Deus”. Ninguém mais assemelha Deus a um homem barbudo, grande e bravo. Aliás, ele até pode ser assim, se assim for o pensamento do indivíduo. Na verdade, Ele é e está muito além da imaginação, na máxima expressão do inimaginável que abrange o infinito cósmico e o pequeno infinito humano.
 
Bem, voltando ao terço, ele passou a ser rezado de quando em quando, à mercê da vontade de vovó Alzira, sempre em forma de novena - nove noites seguidas - defronte ao portão do cemitério. E isso, à noite. E ajoelhados. Ah! Que tempos aqueles.
Então, ajoelhavam-se todos diante do grande portão de saída feito de ferro e rezava-se o terço para as almas. Não havia nenhuma interferência de transeuntes, mas, principalmente, não se assustava a nenhum transeunte. Na verdade, naquele pedaço de rua, não passava transeunte algum.
De qualquer maneira, minha querida avozinha nos ensinou a não temer o cemitério nem à noite, tanto, que tempos depois, já maiorzinho, eu convencia alguns amigos que as almas penadas não ficavam no cemitério, pois elas não gostavam de lá. E o cemitério tornou-se o melhor lugar para as nossas brincadeiras de bandido e mocinho. Era um tal de pular um túmulo, esconder atrás de outro e até brincar de fantasmas sem nenhuma interferência das almas. Parecia mesmo que elas não gostavam de lá. O único problema seria minha avó. Ah! - se ela descobrisse aquele sacrilégio...
 
Na verdade, aquele cemitério estava inativo, talvez porque os túmulos fossem perpétuos e não houvesse espaço para inquilinos, ou porque era pequeno, já que havia outro muito maior. Seus muros eram baixos, mesmo porque ninguém se interessava em pulá-los, e isso facilitava as brincadeiras.
Não havia desrespeito, porque não havia depredação. Era apenas molecagem. Um lugar particular para brincar de trincheiras, já que ninguém ia lá. Coisas que a minha avó nos ensinou para eu entender mais tarde que a morte nem existe de fato. Trata-se apenas de uma saída da vida e, quase sempre, passando pelo portão de saída. Uma saída mais ou menos pré-datada em conformidade com o livre arbítrio de cada indivíduo, mas que naquela época era atribuída a Deus. Logo Ele, princípio Universal de todas as vidas, sejam elas humanas, minerais, vegetais ou animais.
Fosse hoje, eu diria para minha avó: “terço para os espíritos”, pois, no meu conceito, as almas só existem enquanto existirem os corpos físicos. Ao extinguir o corpo extingue-se também a alma. Pereniza-se tão somente o espírito.
 
De qualquer forma, esta é uma lembrança alegre, embora distante, que permaneceu em mim, de tão marcante.

Do livro FRAGMENTOS - seção: da infância

 

 

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