18/02/2022 às 15h43min - Atualizada em 18/02/2022 às 15h43min
O baiano que virou semáforo
Ilustração de Edilson Élio Barbosa O telefone toca, e da outra ponta alguém que não quer se identificar, diz: “É do jornal?” “Sim”, respondo. “Olha, o guarda Pelé está comandando o trânsito na rua Assis Figueiredo, esquina com a Prefeito Chagas. Está dando um verdadeiro show. Vale a pena ser fotografado e ser matéria do Brand-News”.
“Ok”, respondo. “Vou dar um jeitinho de ir até aí”. Coloco o fone no gancho, ajeito toda a tralha de repórter e, entre ir de carro ou de moto, decido por esta. Pelo menos ainda se encontra uma brecha para o seu estacionamento.
Durante o trajeto, lembro-me de já ter visto o Armando Marques da Silva pela TV, exibindo-se em várias cidades do Brasil e até do exterior com sua maneira excêntrica e completamente inusitada de comandar o trânsito nas horas de rush. Sem dúvida, o baiano Pelé tornou-se um símbolo nas campanhas de trânsito desenvolvidas no país.
De fato, Pelé veio a Poços de Caldas para participar da Semana de Prevenção de Acidentes de Trânsito promovida pela SSU e Demutran. Bem, o que interessa é que o baiano veio para dar uma mostra do que sabe fazer fardado, e com um apito na boca.
Encosto a moto junto ao meio-fio e dirijo-me à frente da multidão que se acotovela num dos ângulos daquele cruzamento. Ajusto a objetiva da câmera e começo a apanhar os melhores lances. Depois de alguns minutos, concluo que o homem é bom mesmo: faz gestos e movimentos corporais dignos de um famoso coreógrafo.
Se, ao invés da farda ele usasse uma malha bem justa ao corpo, poderia ser confundido com o famoso bailarino russo Nureiev, em recente apresentação no Municipal, tal a perfeição de gestos, pulinhos e trejeitos que ele pratica em pleno asfalto.
Observo agora que os motoristas estão passando por ali várias vezes, afim de serem comandados por aquele semáforo humano sem se importarem se estão queimando o combustível nacional ou contribuindo para elevar a dívida externa do país.
Sob o calor escaldante de trinta e tantos graus, e sem perder o domínio do trânsito, Pelé começa a transpirar. O apito intermitente parece agora ferir os meus ouvidos, obrigando-me a afastar-me dali. Pego a moto e também não resisto à tentação de passar por aquele cruzamento. Afinal, também quero ser um ator coadjuvante nessa peça montada num palco de asfalto.
Paro junto à faixa e, após alguns instantes, recebo dele o sinal para seguir. Engato a primeira, passo para a segunda, depois a terceira e deslancho na quarta marcha.
O impacto da velocidade refresca-me totalmente nesta tarde gostosa de janeiro. Só paro quando o semáforo à minha frente se apresenta vermelho e, por um instante, com voz baixa, chego a lamentar: “Ora, semáforos! Por que não temos mais Pelés nesta vida?”
Janeiro de 1984
Do livro “Crônicas em Concordata”