21/12/2023 às 15h15min - Atualizada em 21/12/2023 às 15h15min
Sapatos na janela
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C
(Trecho de uma crônica natalina - “Minhas memórias”)
Uma noite de Natal...
Tão longínqua, mas inesquecível, que não amarela jamais e nem arrefece a emoção.
Eu estava com sete anos de idade. Dia 24 de Dezembro de 1952.
Mais um dia 24 de Dezembro...
Músicas natalinas enchiam as casas de magia e de emoção.
Melancolias e esperança ao mesmo tempo. Lágrimas e sorrisos.
Na simplicidade do sentir, as sensações se avolumavam no peito e se transbordavam por meio das lágrimas e dos sorrisos, mesmo sem entender direito, talvez porque na simplicidade das coisas nem era preciso entender. O maravilhoso era só sentir.
Na simplicidade do meu mundo eu era assim também.
Eu não entendia nada, mas sentia tudo. Algo vibrante me chacoalhava por dentro e por fora em sensações inexplicáveis. Certamente as músicas fossem as responsáveis por todas as emoções, pois nós não tínhamos discernimento para sentir as coisas a tal nível emocional sem a influência direta da música Natalina.
Todavia, quando se despede da infância e se embrenha pelo mundo adulto, tolo, o adulto esquece de carregar consigo a magia da infância, cujas fantasias, às vezes, guardam profundas verdades.
Um dia comprido aquele. Esquisito. Ansioso. Eu não sabia explicar direito o que sentia. Pensei no ano passado. Revi muitos sorrisos, muitas crianças felizes. Eu vi muitos brinquedos, mas não me vi entre as crianças e nem vi meu brinquedo. Eu não me lembrava de como fora o Natal do ano passado. Talvez eu não quisesse lembrar.
Depois pensei nos meus irmãos. O que eles estariam pensando? Querendo?
Acabei não pensando mais neles. Eu deveria pensar em mim. Cada criança pensava só em si mesma. Afinal, eu tinha apenas sete anos e o egoísmo, a sensação de posse, do eu, do meu; ainda pulsava como sentimento natural dentro de mim.
Um dia demorado aquele 24 de Dezembro...
Mais tarde, uma quase compreensão me fez mais calmo, menos ansioso. Minha mãe, com a sabedoria das mães, reuniu a prole e falou de paz, falou de amor, falou de Jesus. Falou-nos do verdadeiro sentido do Natal. Falou-nos do pecado e do perdão.
Foi bom. Cada filho assimilou seus conselhos do jeito que pode ou que tivesse entendido. Eu também assimilei do meu jeito, por isso foi bom. Eu me acalmei.
Anoiteceu enfim...
Uma noite cheia de magia e de encantos. Cheia de sons estranhos, de tropel e de tilintar de campainhas. De barulho na janela, de portas se abrindo, de luzes repentinas pelas frestas.
Naquela noite, ao me deitar, eu me senti ansioso outra vez, excitado.
Não conseguia dormir. Torcia fervorosamente para que Papai Noel se lembrasse de mim e me trouxesse um presente. Poderia ser qualquer um, desde que bem colorido. Poderia ser de plástico, não tinha a menor importância, mas que fosse meu, para que eu pudesse compartilhar com as outras crianças, aquela alegria que tantas vezes presenciei, mas não senti.
Eu tinha medo de acordar e descobrir que fora esquecido outra vez e, de novo ter de conviver com a tristeza, até que o tempo a afastasse, mascarando a esperança de que tudo seria diferente no próximo Natal.
É provável que eu ainda não pensasse em Jesus como o aniversariante do dia. Aliás, nem foi para Jesus que o Natal fora inventado. Há controvérsias...
Como toda criança, eu trazia comigo os egoísmos naturais das crianças colocando-me como centro das atenções e, por uma questão de direito, eu deveria ganhar um presente.
Ainda sem discernimento, eu não conseguia entender o porquê das diferenças. Talvez eu já desconfiasse de alguma coisa. Contudo, por que as diferenças? Por que uns ganhavam presentes e outros não? Por que Papai Noel nunca se esquecia de uma turma e vivia a se esquecer de outra? Será que as coisas que eu fazia escondido de meus pais, realmente não eram escondidas a Jesus, que as anotava e as remetia a Papai Noel para que ele não me presenteasse? E aqueles meus amigos mentirosos e maldosos até, que viviam a ganhar presentes lindos? Será que eles sabiam algum truque para enganar a Jesus?
Naqueles tempos, as crianças acreditavam em assombrações, em todos os fantasmas que os adultos criavam, nos castigos do Papai do Céu e no Papai Noel, que passava de madrugada, deixando presentes sobre os sapatos adormecidos nas janelas. Acreditavam na seriedade dele em não presentear as crianças que desobedeciam aos pais, que não comiam tudo na hora das refeições, que brigavam com seus irmãozinhos. Enfim, chantagens emocionais
que condicionavam os comportamentos por algum tempo.
Muitas crianças, um pouco mais suscetíveis, temiam profundamente que suas “artes” chegassem ao conhecimento de Papai Noel.
De alguma maneira, eu tinha lá minhas dúvidas e sofria com aquela ansiedade.
Pelo sim, pelo não, eu havia engraxado meus sapatos “Vulca Brás”, surrado e moldado aos meus pés, mas ainda em ótimo estado.
Para minha tristeza, aqueles sapatos não acabavam nunca. Eles duravam, duravam, duravam. Eu e meu irmão mais velho não ganhávamos sapatos novos porque aqueles sapatos eram novos. Só deixavam de ser quando os pés cresciam.
Então, lá vinha um novo par de sapatos “Vulca Brás”.
Assim, eu coloquei meus novos velhos sapatos no peitoril da janela do quarto e fiquei a vigiá-los. Às vezes, eu cerrava os olhos fingindo dormir, na tentativa de ver Papai Noel.
Acabei dormindo de verdade, vencido pelo sono.
No dia seguinte, ao acordar de manhãzinha, meus olhos marejaram-se de lágrimas. Doídas lágrimas. E sem me mover, fiquei a olhar para os meus sapatos sobre o peitoril da janela, vazios, sozinhos.
Papai Noel não veio. Por quê?
Bateu uma tristeza danada no meu peito.
Eu tentei entender. Lembrei-me do que dissera minha mãe. Tentei aceitar.
Aquelas lágrimas todas, no entanto, eram sinais de que eu nem tinha entendido e nem aceitado.
“Os ricos podem comprar de tudo, mas os pobres têm de lutar muito para conseguir um pouco”.
Quem teria dito aquela frase? Eu não me lembrava.
Chorei mais um pouco, mas logo me contive.
Eu era assim desde pequeno (pequeno?). Uma criança de sete anos se sente grande ao se lembrar dela mesma aos cinco (assim caminha a evolução).
Como todas as crianças, eu queria, mas se não fosse possível, eu guardava o meu querer e sorria mesmo sem ter, tornando-me, nesse ponto, diferente de outras crianças.
Ao me sentar à beira da cama, todavia, um nó na garganta abafou-me o grito. Lágrimas guardadas na emoção escaparam enfim e escorregaram pela minha face. Uma alegria incontida espocou em risos felizes como fogos de artifício. Eu fiquei ali, por um instante, extasiado diante do pacote aos pés de minha cama. Era um pacote lindo por si só, todo vermelho e amarrado com barbante meio dourado. Seu aspecto disfarçava o conteúdo, mas a emoção se evidenciava simplesmente pelo fato de existir um presente. Fosse o presente
que fosse, a verdade era que Papai Noel não se esquecera de mim.
Curioso e feliz, eu comecei a desembrulhar o pacote. De repente, a magia. O encantamento. O riso. A lágrima. O grito enfim: “Meu Deus!”.
Uma bola de futebol, branca, de couro, verdadeira, linda, oficial. Uma bola de capotão. Eu não havia imaginado tão belo presente.
Abracei a bola e saí do meu quarto gritando: “Pai, Mãe, olha o que ganhei! Eu não acredito...”
Meus pais, fingindo surpresa, não contiveram as lágrimas diante do tamanho da minha felicidade.
Ansioso para ir ao encontro das outras crianças e exibir finalmente meu troféu, das risadas a altos brados na igualdade das alegrias infantis e dividir os direitos de uma felicidade que parecia me escapar durante a noite; eu esqueci de meus irmãos, porque meus irmãos eram meus irmãos, parceiros das mesmas simplicidades e dos mesmos anseios. Eu queria sair para a calçada onde as outras crianças sempre saíam, cada qual em seu pódio imaginário,
triunfante.
Eu me lembro que nem tomei o café da manhã naquela manhã e quase me esqueci de que a bola era para ser chutada e não guardada debaixo do braço, no inconsciente abraço a um sonho que se fez bola de verdade.
Cristalizou-se no tempo a certeza de que nenhum presente, naquele Natal, teria tido tal valor emocional qual o valor daquela bola, a materializar o sonho de uma criança que a imaginava como algo quase impossível.
Ah! Aquele Natal.
O tempo passou, a emoção não.
A bola, a par das alegrias que ela promoveu, foi se tornando algo comum. Desgastou-se. Envelheceu. Acabou. O que ficou, realmente, na memória, foi a grande emoção do momento zero, quando a expectativa se transformou em realidade.
A grande lição que viaja no tempo reside no fato de que os sonhos devem ser transformados sempre em bolas verdadeiras, legítimas, brancas, pelos natais afora, revivendo emoções e usufruindo seus fluidos benfazejos, mas não se estagnando nunca, pois o quase impossível é quase sempre possível, no seu tempo e na sua intensidade.
A bola que representava o objeto de uso, simplesmente, desgastou-se com o tempo na brevidade da sua resistência. Mas a bola que simbolizou a realização de um sonho, esta permaneceu na memória como um sonho realizado, verdadeiro, lindo, branco, possível.
Na verdade, as bolas que fazem a emoção de um tempo, muitas vezes não são as bolas que fazem a emoção de outro, embora os sonhos sejam sempre sonhos.
A verdadeira bola, todavia, que caracteriza todos os natais e o Papai Noel de todos os tempos, que realiza todos os sonhos e todas as emoções, chama-se “VIDA”.
A vida é um pacote lindo por si só, todo vermelho e amarrado com barbantes meio dourados a guardar novas possibilidades, simples que sejam, mas que realizam sonhos a cada amanhecer.
Feliz Natal a todos! Como toda criança, eu trazia comigo os egoísmos naturais das crianças colocando-me como centro das atenções e, por uma questão de direito, eu deveria ganhar um presente.
Ainda sem discernimento, eu não conseguia entender o porquê das diferenças. Talvez eu já desconfiasse de alguma coisa. Contudo, por que as diferenças? Por que uns ganhavam presentes e outros não? Por que Papai Noel nunca se esquecia de uma turma e vivia a se esquecer de outra? Será que as coisas que eu fazia escondido de meus pais, realmente não eram escondidas a Jesus, que as anotava e as remetia a Papai Noel para que ele não me presenteasse? E aqueles meus amigos mentirosos e maldosos até, que viviam a ganhar presentes lindos? Será que eles sabiam algum truque para enganar a Jesus?
Naqueles tempos, as crianças acreditavam em assombrações, em todos os fantasmas que os adultos criavam, nos castigos do Papai do Céu e no Papai Noel, que passava de madrugada, deixando presentes sobre os sapatos adormecidos nas janelas. Acreditavam na seriedade dele em não presentear as crianças que desobedeciam aos pais, que não comiam tudo na hora das refeições, que brigavam com seus irmãozinhos. Enfim, chantagens emocionais
que condicionavam os comportamentos por algum tempo.
Muitas crianças, um pouco mais suscetíveis, temiam profundamente que suas “artes” chegassem ao conhecimento de Papai Noel.
De alguma maneira, eu tinha lá minhas dúvidas e sofria com aquela ansiedade.
Pelo sim, pelo não, eu havia engraxado meus sapatos “Vulca Brás”, surrado e moldado aos meus pés, mas ainda em ótimo estado.
Para minha tristeza, aqueles sapatos não acabavam nunca. Eles duravam, duravam, duravam. Eu e meu irmão mais velho não ganhávamos sapatos novos porque aqueles sapatos eram novos. Só deixavam de ser quando os pés cresciam.
Então, lá vinha um novo par de sapatos “Vulca Brás”.
Assim, eu coloquei meus novos velhos sapatos no peitoril da janela do quarto e fiquei a vigiá-los. Às vezes, eu cerrava os olhos fingindo dormir, na tentativa de ver Papai Noel.
Acabei dormindo de verdade, vencido pelo sono.
No dia seguinte, ao acordar de manhãzinha, meus olhos marejaram-se de lágrimas. Doídas lágrimas. E sem me mover, fiquei a olhar para os meus sapatos sobre o peitoril da janela, vazios, sozinhos.
Papai Noel não veio. Por quê?
Bateu uma tristeza danada no meu peito.
Eu tentei entender. Lembrei-me do que dissera minha mãe. Tentei aceitar.
Aquelas lágrimas todas, no entanto, eram sinais de que eu nem tinha entendido e nem aceitado.
“Os ricos podem comprar de tudo, mas os pobres têm de lutar muito para conseguir um pouco”.
Quem teria dito aquela frase? Eu não me lembrava.
Chorei mais um pouco, mas logo me contive.
Eu era assim desde pequeno (pequeno?). Uma criança de sete anos se sente grande ao se lembrar dela mesma aos cinco (assim caminha a evolução).
Como todas as crianças, eu queria, mas se não fosse possível, eu guardava o meu querer e sorria mesmo sem ter, tornando-me, nesse ponto, diferente de outras crianças.
Ao me sentar à beira da cama, todavia, um nó na garganta abafou-me o grito. Lágrimas guardadas na emoção escaparam enfim e escorregaram pela minha face. Uma alegria incontida espocou em risos felizes como fogos de artifício. Eu fiquei ali, por um instante, extasiado diante do pacote aos pés de minha cama. Era um pacote lindo por si só, todo vermelho e amarrado com barbante meio dourado. Seu aspecto disfarçava o conteúdo, mas a emoção se evidenciava simplesmente pelo fato de existir um presente. Fosse o presente
que fosse, a verdade era que Papai Noel não se esquecera de mim.
Curioso e feliz, eu comecei a desembrulhar o pacote. De repente, a magia. O encantamento. O riso. A lágrima. O grito enfim: “Meu Deus!”.
Uma bola de futebol, branca, de couro, verdadeira, linda, oficial. Uma bola de capotão. Eu não havia imaginado tão belo presente.
Abracei a bola e saí do meu quarto gritando: “Pai, Mãe, olha o que ganhei! Eu não acredito...”
Meus pais, fingindo surpresa, não contiveram as lágrimas diante do tamanho da minha felicidade.
Ansioso para ir ao encontro das outras crianças e exibir finalmente meu troféu, das risadas a altos brados na igualdade das alegrias infantis e dividir os direitos de uma felicidade que parecia me escapar durante a noite; eu esqueci de meus irmãos, porque meus irmãos eram meus irmãos, parceiros das mesmas simplicidades e dos mesmos anseios. Eu queria sair para a calçada onde as outras crianças sempre saíam, cada qual em seu pódio imaginário,
triunfante.
Eu me lembro que nem tomei o café da manhã naquela manhã e quase me esqueci de que a bola era para ser chutada e não guardada debaixo do braço, no inconsciente abraço a um sonho que se fez bola de verdade.
Cristalizou-se no tempo a certeza de que nenhum presente, naquele Natal, teria tido tal valor emocional qual o valor daquela bola, a materializar o sonho de uma criança que a imaginava como algo quase impossível.
Ah! Aquele Natal.
O tempo passou, a emoção não.
A bola, a par das alegrias que ela promoveu, foi se tornando algo comum. Desgastou-se. Envelheceu. Acabou. O que ficou, realmente, na memória, foi a grande emoção do momento zero, quando a expectativa se transformou em realidade.
A grande lição que viaja no tempo reside no fato de que os sonhos devem ser transformados sempre em bolas verdadeiras, legítimas, brancas, pelos natais afora, revivendo emoções e usufruindo seus fluidos benfazejos, mas não se estagnando nunca, pois o quase impossível é quase sempre possível, no seu tempo e na sua intensidade.
A bola que representava o objeto de uso, simplesmente, desgastou-se com o tempo na brevidade da sua resistência. Mas a bola que simbolizou a realização de um sonho, esta permaneceu na memória como um sonho realizado, verdadeiro, lindo, branco, possível.
Na verdade, as bolas que fazem a emoção de um tempo, muitas vezes não são as bolas que fazem a emoção de outro, embora os sonhos sejam sempre sonhos.
A verdadeira bola, todavia, que caracteriza todos os natais e o Papai Noel de todos os tempos, que realiza todos os sonhos e todas as emoções, chama-se “VIDA”.
A vida é um pacote lindo por si só, todo vermelho e amarrado com barbantes meio dourados a guardar novas possibilidades, simples que sejam, mas que realizam sonhos a cada amanhecer.
Feliz Natal a todos!