c Lembro do pai chegar carregar dez a doze moleques dentro do chiqueirinho de uma Parati CL ano 89 para jogarmos futebol. Era um time inteiro dentro de um carro. Todo mundo sem cinto de segurança. Molecada faceira. Eu, meus irmãos e meus amigos jogávamos por horas em um clube de Poços de Caldas. Depois o pai pagava um refrigerante e carregava todo mundo suado e fedido dentro do carro. Se fosse nos dias de hoje, ia ser chamado de maluco, irresponsável, tomar uma multa, ter o carro apreendido e perder a carteira de motorista. Que bom não era assim naquela época. É uma das lembranças mais deliciosas que tenho da infância.
Meu pai virou uma estrela essa semana e ainda não consigo acreditar e nem enfrentar a situação. Estou a distância e me pego mudando de assunto cada vez que Caroliny me pergunta como estou. Falo da samambaia, dos gatos, da internet, de comida. Fiz faxina em casa quase todos os dias. Varri, passei pano. Limpei banheiro. Inventei um monte de atividade para não parar. Carreguei Luísa para lá e para cá. Assisti filme indiano de três horas de duração com legendas em inglês no meio da madrugada. Tudo para não pensar. Tenho evitado ligar para o telefone fixo da casa da minha mãe. Era só ele quem atendia. Mas já estou sentindo falta de receber ligações daquele número. Como não era adepto do celular, também era só ele quem ligava do fixo.
O choque parece que veio dias depois. Vi notícias da liberação do software da Receita Federal para a declaração do Imposto de Renda. Por um momento pensei: “Hoje o pai vai ligar para pedir os informes de rendimento.” Seu Zé era o melhor fiscal da Receita Federal, sem ser funcionário da pasta. Nunca na história desse país soube de uma pessoa que amolasse tanto - e diariamente - por tudo relacionado ao Leão, desde o início do noticiário sobre os prazos para declaração. Sabia de cor e salteado as regras e datas e ficava emputecido se eu demorasse a enviar os documentos. Até escuto a voz dele me cobrando recibos para que a restituição saia logo.
Mas não, Fabrício. Ele não vai ligar. Nunca mais. Está estranho. Está triste. Está dolorido. Sou capaz de escutá-lo dizendo em qual supermercado o café, o filtro ou o queijo estão mais baratos. Muita coisa não vai ser igual. Não conseguirei olhar para uma pizza mussarela sem lembrar dele. Escutarei o pai gritando cada gol do Palmeiras. Xingando a cada vez que o Dudu ou o Rony forem substituídos. Ouvirei todos os xingamentos possíveis todas as vezes que o Abel Ferreira colocar o Breno Lopes em campo.
Mas de uma coisa eu fico feliz, pelo menos. Não deixei de dizer nada para o meu pai. Acho que não ficou uma sensação de “poderia ter feito isso, poderia ter feito aquilo”. Sempre deixei claro o quanto era importante para mim e que como o carinho que sempre recebemos influenciou na maneira com que eu cuido da Luísa. Se eu sou um pai hoje, e um pai que participa da vida da filha, é porque busco de todas as maneiras trazer para a Luísa um pouco do muito que aprendi com o Seu Zé. Menos carregar um monte de criança no bagageiro. E sejamos claros que não é porque não seja divertido….
Ainda estou processando tudo, pensando que é um sonho ruim, ou algo assim. Que o telefone vai tocar com ele pedindo os documentos para o imposto de renda, que ele vai falar do jogo do Palmeiras, perguntar como estou e etc… O pai foi, e isso está difícil de acreditar. Não está mais do nosso lado. Mas de maneira nenhuma está longe. Ele está dentro da gente. No coração, na mente, na alma… Fica uma sensação de paz com tudo de bom e de todo o amor que ele ensinou e, ao mesmo tempo, fica aquela mágoa e muita raiva do tempo. De sua rigidez, de sua praticidade e da maneira com que corre rápido, rápido, rápido e impiedoso. Como dizemos em Minas: “Nossa, como assim o senhor já vai tão cedo?”